A última vez

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Disseste-me que ias partir. Ias em busca de trabalho noutras paragens. É o teu corpo que, se calhar, não me quer como talvez o queira a Iolanda da Ordem natural das coisas.

Tu também não tens um tufo de pêlos no teu ventre mas nele escondes a boca e os lábios com o sabor e os cheiros dos campos de milho no verão. Fecho os olhos e bebo outra vez da tua água.

Parece que foi ontem mas já se passaram alguns anos.

Passeámos de mãos dadas, lado a lado, com os passos desacertados, um prenúncio, talvez um sinal para aprendermos a partilhar.

No Verão misturava-se o tempo das colheitas do milho dos campos, das ameixoeiras, dos pessegueiros, havia maçãs e havia pêras. E cobria o teu corpo nú com folhas de milho e amoras, mordia as ameixas e molhava-as em ti e comia-as até ao caroço. Brincava com ele na minha boca e mordia os teus mamilos, perdia o sal mas eu voltava a molhá-lo em ti.

Sentavas-te com as pernas cruzadas e os braços estendidos, como se te estivesses a preparar, amarravas, prendias o cabelo com as folhas de milho, a silhueta dos teus seios, à espera que descessem sobre mim e os beijasse, porque também eram meus.

Aprendemos a amar junto ao rio como tantos antes de nós, presos num tempo que já não volta, num rio que teima em continuar a correr.

Namorávamos nos degraus da tua entrada, em pé, juntos um ao outro, só nós é que sabíamos, a noite cúmplice dos amantes.

Ficávamos até às primeiras chuvas de Setembro.

Os anos passam, o tempo corre, como os cães de um trenó, não me recordo quem foi que o escreveu.

Fui ao teu encontro, em segredo, pela porta de serviço, já noite dentro. A primeira vez foi uma corrida louca para libertar todos os medos. A minha boca nas tuas coxas, o barulho das máquinas que abafavam os teus suspiros, um sabor que enlouquece, o cheiro a maresia e os corpos que descansam.

Um dia partiste. Perdi-te, como sempre te disse, porque já cheguei tarde à tua viagem e à tua vida.

Gostava de te poder ter outra vez, ver-te uma última vez, estar contigo uma última vez, sentir-te estremecer, as tuas mãos apertarem as minhas, fazermos amor como das outras vezes, eu deitado e tu de costas voltadas para mim, a comandares o ritmo à tua vontade até chegar a hora de eu te perguntar:

- Posso?
- Podes.
Não me esqueci da tua voz.
Libertei os meus  rios.
Correm todos para o teu mar.

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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