A Saúde Global e o Fascismo

Em vésperas da discussão da petição por um referendo ao Tratado Pandémico da Organização Mundial de Saúde (OMS), lançada por mim, Marta Gameiro, em 2022, será o momento, penso, de esclarecer algumas questões. O tema vai provavelmente tornar-se, como todos os temas relacionados com o Covid-19 desde 2020, uma bandeira atribuída à extrema-direita negacionista, incluindo-se neste grupo todos aqueles que criticaram com fundamento a gestão da pandemia e que, por tal, foram catalogados de extremistas. Sobre isto já pouco se pode fazer. Num tempo em que tanto se fala em diversidade, tolerância e se lembra a luta contra a censura, pergunto-me com frequência se tais paladinos da diferença e da liberdade de abril sabem efetivamente o que estão a defender.

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Nos últimos quatro anos envolvi-me profundamente na crítica à gestão da pandemia e procurei perceber, dentro das minhas limitações, onde começou a distorção científica que permitiu esta escalada de acontecimentos. Uma das conclusões a que cheguei começa num conceito básico a todo o tema: Saúde.

A “Saúde Global” ou “One Health” é um slogan associado aos objetivos societários da OMS, que tem tido como principal figura de defesa, se não mesmo o grande promotor, o multimilionário da tecnologia Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo. A ideia em si mesma parece destituída de mácula: que mal há em defender a saúde a nível global?

O capitalismo caritativo ou a filantropia capitalista, como lhe queiramos chamar, padece do problema inerente ao próprio conceito: busca o lucro. Introduzir a caridade ou filantropia nas lógicas de mercado é envolvê-la na selva de competição que tem, obrigatoriamente, de produzir resultados. Herdeira das lógicas económicas neo-liberais, esta filantropia é flexível, reinventa-se constantemente e pensa a curto prazo. Noutras palavras, pensa a nível do “produto” a vender e não olha a meios às campanhas de marketing necessárias para ter retorno.

O Bill Gates é o mais proeminente no catálogo de multimilionários da tecnologia que tentam lavar a imagem com boas obras. A estratégia é tão velha como o tempo, basta lembrar o que o narcotraficante Pablo Escobar também fez na sua época a nível “filantrópico”, mas talvez nunca como hoje se tenha gasto tanto dinheiro nela. Tal quantidade de investimento a circular tem impactos inevitáveis na sociedade, sobretudo numa época em que a política se tornou dependente da economia. Mas Bill Gates e os seus não são políticos – apesar da sua ação ser largamente política – são empresários.

 “Saúde” vem do latim salus, referindo-se à época à integridade anátomo-funcional dos organismos vivos. Daqui surge a derivação salvus, mais voltado para a superação de ameaça à integridade física dos sujeitos. Salus, por seu lado, derivará do grego holos, que implica a “totalidade” e encontra-se na origem do termo holismo. De uma forma geral ter “saúde” advém de uma noção arcaica de ser inteiro, sendo entendida hoje na medicina como “bem estar”.

Ter saúde, portanto, é diferente de estar vivo. A médica psiquiatra norte-americana Anna Lembke, autora de Drug Dealer M.D., constata como a crise de opióides nos EUA teve origem no aumento do sucesso das cirurgias médicas. Os pacientes começaram a sobreviver mais graças aos avanços tecnológicos, mas aumentou também a dor crónica, efeito secundário de muitas destas intervenções.  Compadecidos com o sofrimento dos doentes, os médicos tornaram-se alvos fáceis de empresas farmacêuticas, como a Purdue Pharma, e a sua gama de vendedores treinados nas técnicas do marketing agressivo, para receitar medicamentos novos para a dor, cuja composição, veio-se a concluir, não era muito distante da heroína. O vício, que estaria em princípio aglutinado nos doentes terminais, rapidamente se espalhou pela América, assim começou o receituário indiscriminado destes fármacos para qualquer tipo de dor (a este respeito, recomendo O Império da Dor, do jornalista Patrick Radden Keefe).

No seu livro Cérebro de Escassez, o jornalista Michael Easter acaba a concluir que a distância que separa o stress pós-traumático, que pode destruir mentalmente as pessoas na depressão, e a consciência traumática é ténue. Mas precisamos de viver determinado tipo de experiências para ganhar consciência sobre o mundo e sobre nós próprios para, deste modo, evoluirmos de algum modo na nossa humanidade. Mas como fazê-lo num mundo que tudo faz para suprimir o sofrimento, gerando, num estranho paradoxo, ainda mais estados de depressão?

Autores como o médico Jean-David Zeiton, doutorado em epidemiologia clínica, (autor de O Suicídio da Espécie) têm alertado como o crescimento económico e progresso tecnológico trazem inevitáveis efeitos secundários, com novos e complexos problemas de saúde pública. Resta a questão: o que fazer? Será que as mesmas indústrias capitalistas que sugam a vida às pessoas, podem arranjar soluções para os problemas por elas criados?

O documentário da Netflix, de 2020, Inside Bill’s Brain, é uma interessante exposição à filantropia de Bill Gates, um destes capitalistas. Logo no primeiro episódio somos apresentados ao seu projeto de sanitas com compostagem interna, uma forma de combater a falta de saneamento em países que cresceram demasiado sem infraestruturas sanitárias, em particular em África, conduzindo à propagação de doenças. Gates identificou o problema e investiu milhões na busca de uma solução. “Brutal!”  – pensamos de imediato – “alguém com recursos a ajudar a encontrar soluções”.

À medida que o episódio avança, num sentimento desconfortável que acaba a marcar o visionamento deste documentário cor-de-rosa, o entusiasmo acaba a transformar-se em ceticismo. Gates investiu milhões nestas sanitas, que depois transformou em projetos de sanitários públicos. Mas, poucos as usam. “Esta gente é burra?!” – indagamos – “não percebem os benefícios na saúde pública desta solução super criativa?!”. 

Na tentativa de perceber qual o problema num determinado país africano, entra Melinda Gates. A resposta sobre o relativo falhanço deste projeto é a marca da Fundação Gates: o país em causa tem uma elevada taxa de violações e as mulheres, em particular, não usavam as sanitas públicas com medo de ser violadas.

O livro O problema Bill Gates, do jornalista de investigação Tim Schwab, é uma listagem sucessiva deste tipo de situações caricatas, em que as soluções encontradas negligenciam completamente o lado humano do consumidor. Gates gasta milhares de milhões em África, mas gasta muito mais em lobby político no Congresso dos EUA. A sua filantropia possui objetivos definidos, em grande medida moldados por uma ideologia voltada para soluções tecnológicas e não para a resolução estrutural de problemas. Apesar de ter captado ao longo dos anos especialistas nas mais diversas áreas de saúde pública, com larga experiência no terreno em países africanos, como Hans Rosling, autor de Factualidade, ou jornalistas e/ou ativistas que dedicaram a vida a mostrar os impactos do homem na natureza,  como David Attenborough, a grande voz da BBC Vida Selvagem, Gates tem-se apropriado sobretudo dos seus discursos e narrativas. O objetivo continua a ser, como sempre foi, vender produtos tecnológicos.

A apropriação do discurso da esquerda para legitimar objetivos capitalistas é uma estratégia típica da extrama-direita, como se pode constatar ao longo de As Origens do Totalitarismo, da filósofa judia Hannah Arendt. Mussolini e Hitler fizeram-no, apropriando-se do discurso socialista em torno do trabalho para ganhar espaço entre o eleitorado descontente com as soluções do comunismo. Conseguir que instituição públicas financiem projetos com objetivos direcionados e, em grande medida, privados, não anda muito longe do corporativismo fascista.

A mesma Hannah Arendt argumenta que as grandes guerras surgiram de uma aliança improvável entre a elite e a ralé (vulgo populistas), ambas atraídas por um desejo de destruir o mundo existente em prol de um novo, moldado pelos grandes projetos tecnológicos da época. O que os distinguia era a exposição: a elite trabalhava na sombra, a ralé queria palco.

O crescimento do populismo conservador é, pois, apenas a versão espalhafatosa e popular do que já sucede no topo da hierarquia social, procurando-se imitar, e frequentemente exacerbando, os vícios já instalados, como documenta o analista político Giuliano da Empoli, autor de Os Engenheiros do Caos. Embora se ataquem os populistas pela ignorância, o facto é que estes são frequentemente estrategas geniais, que conseguem captar as tendências conjunturais, distorcendo-as à sensibilidade das camadas populares. Mas pensar excessivamente a longo prazo, negligenciando o homem do presente em prol de um hipotético homem do futuro, não é diferente do pensamento populista de curto prazo. São extremos. 

O que é, então, a Saúde Global? A Saúde Global é um slogan corporativista, cujo propósito é vender tecnologia embebida em marketing de esquerda, vulgo “progresso”. As aproximações de Gates à China, e de Sillicon Valey de forma geral, são disso prova, como constata O Capitalismo de Vigilância, da socióloga Shoshana Zuboff. A “saúde”, tradicionalmente voltada para a prevenção e a saúde primária, aliás uma das grandes conquistas do 25 de abril de 1974, acaba transformada em produtos. Ter saúde implica ter dinheiro para comprar engenhocas, mesmo que não funcionem como prometeu o fabricador. Que se lixe o exercício físico, a alimentação saudável, a exposição à natureza e aos seus patogénios que fortalecem o sistema imunitário, as análises regulares, ou os tratamentos, vacinais ou não, com provas dadas na prevenção de doenças graves e marcadamente seguros.

A extrema-direita está a crescer em todo o mundo? Está! E começou bem lá em cima, não cá em baixo. As massas com frequência copiam as elites antes de tomarem consciência sobre o impacto dos seus desvarios em si próprias, conforme constata a análise histórica de Daron Acemoglu e Simon Johnson, em Poder e Progresso – a nossa luta milenar pela tecnologia e prosperidade.

Penso, em linha com o ativista e antigo espião Edward Snowden, que isto de algum modo começou com o crescimento da vigilância. Os ataques terroristas às Torres Gémeas a 11 de setembro de 2001 marcaram um ponto de viragem militarista no complexo industrial militar dos EUA, que colocaram milhões em projetos diversificados para combater inimigos invisíveis. Tal permitiu o impulso da Inteligência Artificial e da tecnologia genética, as quais tiveram ambas saltos de desenvolvimento na mesma época, como se pode ler em O Código da Vida – Jennifer Doudna – A edição genética e o futuro da espécie humana, do autor Walter Isaacson. Mas em que mãos e com que prioridades se desenvolvem estas tecnologias?

O Tratado Pandémico e as Emendas ao Regulamento Sanitário Internacional são um pequeno passo burocrático num mundo que está a caminhar a passos largos para novas versões do Holocausto judaico, imerso na criação de sucessivas indústrias que acham que a Ética ou o mero consentimento informado são empecilhos ao progresso social. Entretanto vamo-nos distraindo com guerras, reais ou imaginárias, há muito prometidas mas com uma aparente surpresa para a comunicação social, que rapidamente toma parte de um dos lados – em teoria o mundo livre – sem questionar os pressupostos.

Onde fica a nossa humanidade?

Sim, o nazi-fascismo voltou. Têm a certeza que sabem identificá-lo?

Artigo em co-autoria com com L.H.Fernandes

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