Os arcanos da criação artística

Dez azuis pontos luminosos no tecto. Só. Negro, o cenário. Total, o silêncio. Expectativa. Escorrem minutos. Que é que vai sair daqui?

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fotografia de Luís Bento/CMC

Do nada, um assobio distante. A espaços. Outro. Não é de gente, é de pífaro ou apito. Outro. Largos momentos. Aparece a medo o senhor de apito na boca. Olha, desconfiado, para todos os lados. Faz trejeitos, sublinhados pelo apito ou são os trejeitos que sublinham o assobio?

Estou a referir-me aos largos minutos iniciais do bailado «Presenças na Ausência», que a Companhia de Ballet da Cidade de Niterói, fundada pela Prefeitura de Niterói no dia 1 de março de 1992, apresentou – como início da sua digressão por terras portuguesas – no passado dia 14 de Março, na Academia de Artes do Estoril (Auditório Municipal Carlos Avilez). Insere-se o espectáculo em protocolo de colaboração celebrado entre o município cascalense e a referida Prefeitura.

fotografia de Luís Bento/CMC

Só bem mais adiante do espectáculo (que dura cerca de uma hora) há música, discreta, e os corpos dos descalços bailarinos (5 homens e 6 mulheres, a mais nova ainda não tem 40 anos e a mais velha ultrapassou os 60), correm, enovelam-se, esgrimem, contorcem-se, angustiam-se… mas não dizem palavra.

Apenas para o final a cena se alegra em dança, ritmada por forte som de harmónio (pareceu… ou terá sido o saxofonista André Arueira?)…). Os esgares de sofrimento e dor cedem passo à melodia, descontraem-se e ao público até apetece agora ir dançar também.

fotografia de Luís Bento/CMC

Vieram os discursos da praxe. É bom estar em Portugal. Aprende-se que Cascais não é cidade, é vila, Congratulamo-nos todos com o intenso intercâmbio irmão. Pronto.

Uma sugestão

À saída, porém, a meias palavras, para não darmos parte de fracos: «A princípio, eu não percebia nada daquilo!». A princípio…? E no fim?

Aqui chegados, surge a reflexão. Sim, é um privilégio, um direito terem os artistas liberdade plena de criação; mas… quando criam é para quê? É porquê? Por uma pulsão interior, sabemo-lo. Pela vontade de algo transmitirem. Exacto: pela vontade de algo transmitir é resposta unanimemente aceite. E aí reside o ponto: se algo se quer transmitir é necessário que essa transmissão seja bem recebida e cabalmente captada ou, pelo menos, nas suas linhas gerais.

O que é que falhou, então, no espectáculo do dia 14, no Auditório Carlos Avilez? Uma folha! Uma folha A4 só que fosse, entregue a cada espectador a dar, ainda que em traços largos, uma ideia do que se pretendia mostrar e porque se quis mostrar dessa maneira e não doutra!

            – Mas, assim, Amigo, estava a papinha feita e tu não ias para casa com a ideia, por exemplo, de que se cantara um hino contra a violência de homens contra a Mulher, da Mulher contra o Homem, um hino a favor da fraternidade independentemente das dificuldades, dos membros desconjuntados, dos silêncios amordaçados…

            – Compreendi. Mas diz-me lá uma coisa: que lembrança levo eu para casa? Como se chama o grupo? Quem o ensaiou? Como se chama o espectáculo e porque se chamou assim? Quem foi o coreógrafo? E o que significa, por exemplo, o estridente assobio saído do nada?

            Pois.

Não creio que haja aqui razões financeiras, que umas duas centenas de folhas A4 e a correspondente tinta não arrombariam as finanças da Fundação D. Luís I!

Não havia ninguém capaz de escrever umas linhas? Não acredito! O que ora me custa é a que moda parece estar a pegar! A 3 de Novembro, assisti no Casino Estoril à representação da ópera Nabucco e também aí, «mais uma vez, a produção não achou de interesse disponibilizar qualquer informação acerca da identificação dos actores e dos respectivos papéis». Não, eu não queria o libreto com todos os rr e ss! Bastava-me a tal folhinha a identificar o grupo, os personagens, o maestro e dois parágrafos a situar a ópera no tempo. O mesmo eu gostaria de ter havido aqui, no dia 14. Discordo da inoperância, preconizo a vontade de tornar a cultura ACESSÍVEL.

Claro, como felizmente me ensinaram a pesquisar na Internet, li depois que o espectáculo, que é de 2022, “lança um olhar reflexivo e coreográfico sobre o ciclo do Modernismo» e  que «através do movimento atravessado pelos acontecimentos da atual história brasileira, e do seu passado recente, os bailarinos tecem gestos e relações espaciotemporais no âmbito da cena e além”. “Dançam a inquietude, as incertezas pertinentes e a contemporaneidade, expondo no corpo as marcas e as memórias de um Brasil cheio de matizes. No final, o palco transborda brasilidade com os bailarinos convidando a dançar ao som de músicas, de norte a sul do país, deixando o público com vontade de dançar junto. Uma catarse artística, renovando a crença na arte, na cultura e na nossa força”, conclui a apresentação. 

Também fiquei a saber que a coreógrafa é a carioca Esther Weitzman; Fran Mello, o director artístico da companhia; e todos os técnicos do espectáculo estão mencionados em http://balletcidadedeniteroi.com.br/repertorio . Não foi fácil a caminhada; mas lá se chegou!

            

1 COMENTÁRIO

  1. Genciano Morais Afonso
    Essa da “folha” devia ser obrigatório distribuí-la em espectáculos como esse. Concordo, amigo.

    Elvira Bugalho Santos
    A criação artística é sempre de quem a cria… Os outros intuem-na, sentem-na ou não, tentam interpretá-la e, por vezes, sentem-se excluídos da obra… Cabe ao criador preocupar-se, ou não, com os que a irão observar.

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