O sapateiro que foi muito além das botas!

«Ne sutor ultra crepidam!», «Não vá o sapateiro além da chinela!». Criticou o sapateiro um quadro do pintor Apeles, por nele estar mal desenhada uma sandália; e isso lhe bastou, segundo reza a História, para denegrir o quadro por completo. Apeles decidiu pô-lo no seu lugar com essa frase que ficou célebre. De chinelas poderia perceber, mas de pintura o melhor era estar calado! O sapateiro de que, ao invés, vamos falar não hesitou em ir «além da chinela». E fez muito bem.

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Habituei-me desde moço pequeno a ouvir falar dele: o sapateiro de Santa Susana, ali para as bandas de Alcácer do Sal, que fazia como ninguém as botas caneleiras de bom cabedal e cardadas a preceito e bem assim os sapatos com cabedal de vitela. O pessoal das pedreiras desta zona ocidental de Cascais era seu cliente fiel.

Meu pai não queria botas feitas por mais ninguém e praticamente todos os anos lhe encomendava um par. Confesso que não sei como se estabelecia o contacto, numa época – os anos 50 – em que nem sequer telefone não era de uso. Nunca cheguei a falar nisso a meu pai. Algum dos nossos conhecidos, de passagem para o Algarve ou para o Alentejo profundo, passaria por Santa Susana, levava as medidas e encomendava; a encomenda viria pelo correio ou trazida por outras ou pelas mesmas mãos. Não sei também como é que a fama do sapateiro chegara aqui. O certo é que era uma festa quando as botas vinham e meu pai ou eu próprio as ensebávamos a rigor, que era um gosto acariciar aquele cabedal e ouvir o bater das cardas nas pedras do caminho.

Um mistério para mim esse sapateiro bem afamado, cujo nome, creio, até ninguém sabia ao certo, era «o sapateiro de Santa Suasana», pronto!

Este ano, porém, deixei-me de delongas decidi-me investigar. Através da responsável pelo Museu de Alcácer, Dra. Marisol Ferreira, que foi minha aluna, vim a saber que sim, falara-se nesse sapateiro famoso, que já falecera, mas a família ainda vivia por Santa Susana.

Bati à porta da Junta da União de Freguesias de Alcácer do Sal e Santa Susana e expliquei ao que vinha. Recebi, a 15 de Fevereiro, mui simpática resposta, assinada por Ana Marques (assistente técnica):

«Venho pelo presente, por indicação do Presidente da Junta de Freguesia, Sr. Arlindo de Passos, agradecer o reconhecimento pela arte e preceito das nossas gentes.

A habilidade do Sr. Franklin era conhecida na altura e ainda hoje permanece na memória, quer dos que tiveram o privilégio de o conhecer, quer dos que ouvem as histórias das vidas que por cá passaram.

Ainda que não possamos divulgar informações pessoais, informamo-lo que temos conhecimento que a sua única filha reside nesta freguesia».

Em resposta, deixei, pois, os meus contactos.

Daí a uns tempos, recebo a (in)esperada chamada. Era Edite Amador, de 69 anos, a filha de Franklim (obrigado depois a escrever Franquelim) Vitorino Amador.

D. Edite mostrou, desde logo, grande orgulho no pai que tivera. É que, nascido a 29 de Março de 1925 e falecido a 3 de Dezembro do ano 2000, seu pai, o «Sr. Amador da sapataria», fora muito além das botas caneleiras que de toda a parte, mesmo da Europa, lhe encomendavam. Era «muito evoluído para a época», garantiu-me, e acrescentou:

– Veja: a minha tia, irmã de meu pai, tem 96 anos, está num lar, mas ainda lê e, quando a vou visitar, conta-me o enredo dos livros de fio a pavio. Imagine que foi a primeira mulher cá do sítio a andar de bicicleta! Meu pai, por seu turno, era como que o assistente social da aldeia. Escrevia as cartas das pessoas que não sabiam ler, tratava-lhes da documentação, recebia as pensões… Foi correspondente, desde 1960, do Diário de Notícias e do Diário Popular e, por sinal, eu gostaria muito de recolher as notícias que ele enviava.

Entre a documentação fotográfica que teve a gentileza de partilhar, D. Edite não quis deixar de mostrar a 4 L:

– É o carrinho dele, que ainda possuo e dou as minhas voltinhas por Alcácer nele. Tem um valor sentimental para mim que não imagina. Era para transportar os sapatos e botas para os montes e aldeias do concelho e para ir comprar os cabedais e outros materiais a Évora e Setúbal. Antes, tivera uma moto e depois uma vespa que era como se deslocava.

Renault 4 L de Franquelim Amador

Recebemos também uma página de reportagem em que Franklin Amador mostra o seu trabalho e as ferramentas que usa; veio a foto duma das formas e a imagem destes «sapatinhos brancos, feitos pelo meu pai para mim, com os quais aprendi a andar»; a sua autenticação como correspondente do Diário de Notícias e do Diário Popular, e os atestados de participação em encontros de artesanato. Numa das páginas de publicação que acompanhava esses eventos, se escreve que, em Santa Susana, se fazem, «quase exclusivamente botas caneleiras e calçado ortopédico. por encomenda».

recortes de jornais com reportagens sobre a sapataria de Franquelim Amador

A «Sapataria do Sr. Amador» precisava de obras e, não havendo condições para continuar, Edite Amador acabou por a vender após a morte do pai. Hoje, restam, em Santa Susana e não só, as bem agradáveis memórias de um diligente mestre sapateiro que não teve receio de «ir além da chinela»!

Ao Sr. Presidente da Junta da União de Freguesias de Alcácer do Sal e Santa Susana, Arlindo José Paulino de Passos, aqui se deixa o apelo: perpetuem-nas, essas memórias, na placa toponímica duma das ruas de Santa Susana, Para que os seus vizinhos saibam que também um modesto, mas mui competente oficial sapateiro merece ser recordado e sintam orgulho nele!»

8 COMENTÁRIOS

  1. De: maria helena coelho
    Enviada: 12 de março de 2024 09:34
    Já assistente da Faculdade eu ia mandar arranjar os sapatos, como ainda era uso.
    E passava horas a ver um sapato todo estragado a ficar perfeito e a luzir na mão daquele sapateiro.
    Quantas vezes nas minhas aulas na Universidade eu disse «quem é bom no que faz, ganha o respeito e admiração dos outros» e contava a história do meu sapateiro.
    Sapateiro que desapareceu e que, segundo creio, não teve vida feliz, pois foi obrigado a desviar-se da sua arte.
    Histórias de vida!…das nossas vidas!…

  2. Uma história, ou varias agregadas, muito bonita sobre a competência de um artesão.
    Este, de facto, ia além de botas e conhecimento de materiais para calçado: era solidário com as pessoas e um comunicador.
    Para mim, que sempre gostei de sapatos bons e bonitos (comecei a usar saltos aos 15 anos, mas muita contenção nos gastos de calçado de Verão e de Inverno…) era um prazer olhar as montras das sapatarias no núcleo medieval de Coimbra e mais ainda os sapateiros que faziam os arranjos de calçado gasto à porta das suas lojas, para colherem as vantagens da luz natural.
    E muito me agradou neste texto o apelo do autor para que a Junta de Freguesia preserve a memória deste Senhor, até na toponímia local.
    Muito grata, José d’ Encarnação.

  3. De: Edite Amador
    Enviada: 12 de março de 2024 15:05

    Na realidade, adorei o artigo, fiquei até muito emocionada. Só tenho motivos para agradecer pelo pai que tive nos tempos que corriam, pela sua inteligência e a sua cultura apenas com a quarta classe, ele não olhava ele via para além do óbvio. Só para relembrar esses tempos na aldeia, de muita miséria e escassez conseguiu que eu fosse estudar (contra a vontade da minha mãe ), fiz o curso de enfermagem (ou não fosse eu filha do meu pai em ter dentro de mim a arte de cuidar do outro como ele o fazia tão bem), profissão que exerci nesta comunidade até à minha aposentação. A aldeia tinha bastantes habitantes e jovens todos trabalhadores rurais, só eu e a filha do senhor do café e o filho do regedor da aldeia é que estudámos.Todos os jovens iam trabalhar no campo.
    Muito OBRIGADA pelo seu interesse, pela sua sensibilidade e pelo seu artigo.
    UM BEM-HAJA
    Um abraço
    Edite Amador

    Comentário meu (JdE): Nós é que estamos gratos por nos ter dado a possibilidade de conhecer tão grande testemunho de profissional e de Cidadão. E esteja descansada, Edite: cabe-lhe toda a razão de ter orgulho do seu pai. E dê por nós um abraço também à sua tia!

  4. De: Victor Martins
    Enviada: 12 de março de 2024 16:02
    Pois tantos mestres viveram e ainda devem existir alguns cuja arte passará ao lado de um “aplauso” social. No caso, um mestre sapateiro contrastando com os sapateiros da nossa praça política… abraço

  5. Fiquei muito comovida ao ler este artigo do meu querido PROFESSOR José dˋ Encarnação ,mas muito mais FELIZ ME SENTI POR SABER QUE CONHECEU MUITO DE PERTO O PAI DUMA GRANDE AMIGA ,que considero como IRMÃ.
    CREIO QUE O LEGADO DEIXADO PELO PAI DA EDITE,À SUA MENINA FOI ENORME .
    A EDITE É UMA MULHER COM M GRANDE. PELA SUA HUMILDADE E SABEDORIA.
    AMIGA DA SUA AMIGA E DE TANTOS OUTROS QUE GRAVAM NO CORAÇÃO PARA SEMPRE O SEU NOME POR RECONHECEREM OS SEUS DOTES PROFISSIONAIS E HUMANO.
    UM DIA GOSTAVA DE ME ENCONTRAR COM O PROFESSOR E COM A EDITE E ,SEI QUE SERIA UM BELO REENCONTRO.

    • Recordo dois dos comentários exarados no FB e que agradeço:

      Maria Miranda
      Como sempre muito interessante o texto do Professor. A magia da sua escrita mal se começa a ler suga-se sem levantar os olhos até ao final da mesma. Obrigada

      Domingos Barradas
      Uma história simples, descrita com raro primor, como é apanágio do seu autor.
      O mestre Franklin bem merece a atenção da junta de freguesia para que o seu nome seja recordado numa rua da terra.
      Abraço amigo.

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