JORNALISMO CONTRA A INDIFERENÇA

Jornalismo do canal Al Jazeera contra a indiferença e o encobrimento dos abusos sexuais sobre crianças na Igreja Católica de Timor-Leste. Uma podridão a que Portugal não escapa, quanto mais não seja por colaborar no silenciamento destes casos.

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1960

Um documentário do canal de televisão Al Jazeera sobre pedofilia em Timor-Leste, obteve testemunhos de vítimas que apontam o dedo a padres católicos, nomeadamente a Ximenes Belo, o bispo galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1996.

Trata-se de um documento jornalístico raro, porque o tema da pedofilia na Igreja Católica de Timor-Leste é uma espécie de “segredo de Estado” guardado a sete chaves, mesmo depois do Vaticano ter afastado Ximenes Belo de Timor-Leste e de haver um outro padre condenado a pena de prisão efetiva. O padre norte-americano Richard Dashbach foi condenado a 12 anos de prisão por crimes de abuso sexual de menores, no orfanato Topu Honis, em Oecusse.

fotogramas do documentário “East Timor’s priest scandals” da Al Jazeera

A Al Jazeera classifica Timor-Leste como “o Estado mais católico do mundo”, uma ideia preconcebida que pode nem ser verdade. Quem conhece o país sabe bem que fora de Dili, nas 8 mil aldeias espalhadas pelas montanhas, não há igrejas, mas Uma Lulik (casas sagradas onde os vivos falam com os espíritos dos antepassados) e nos terreiros os tótemes animistas são mais comuns que as cruzes. Mas, enfim, a Igreja Católica é, de facto, preponderante e teve um papel importante na resistência contra o invasor e ocupante indonésio e muçulmano. O papel da Igreja não pode ser desligado do combate entre religiões pela conquista de territórios, principalmente nas zonas de fronteira entre o mundo islâmico e o católico.

Esse passado histórico recente parece estar na base do silêncio que impera sobre os inúmeros casos de pedofilia na Igreja Católica timorense que se têm verificado, ao longo dos tempos. Há uma tampa que silencia o clamor das vítimas. No país não se discute o assunto, até porque os principais dirigentes políticos encobrem e apoiam abertamente os criminosos. É o caso do padre Richard Dashbach que, mesmo depois de condenado, continua a receber o apoio assumido de Xanana Gusmão, um dos principais dirigentes históricos de Timor-Leste, desde o tempo da resistência.

Xanana Gusmão visita Richard Dashbach na prisão de Bécora

O documentário da Al Jazeera faz uma retrospetiva histórica, desde que em 1975 a antiga colónia portuguesa declarou a independência, a invasão indonésia e os 24 anos de ocupação militar e os 150 mil mortos que a repressão provocou.

O papel que a Igreja Católica teve durante esse período, serve hoje para calar as acusações de pedofilia, para ignorar que há padres que violam crianças. E, no entanto, há vitimas que não se calam, mas cujos gritos são silenciados, quer pelo poder quer pelos media. E o exemplo que podia ser repetido, fica esmagado por esse silêncio.

Em Portugal, os abusos sexuais dos padres católicos timorenses não é assunto, mesmo se há muitos padres portugueses no clero timorense. Mesmo se Portugal gasta em Timor-Leste a fatia mais gorda dos seus recursos dedicados à cooperação. Mesmo se é em Portugal que Ximenes Belo se acoita, depois da sua expulsão de Timor-Leste decretada pelo Vaticano. Ximenes está nos Salesianos na cidade do Porto, onde vive com conforto, certamente. Mas saberá que os pecados cometidos lhe retiraram o direito a um ‘lugar no céu’.

No inferno vivem as vítimas de Ximenes e de todos os outros abusadores. O padre Dashbach confessou por escrito os seus crimes.

fotograma do documentário “East Timor’s priest scandals” da Al Jazeera

“Não me lembro da cara delas, muito menos dos nomes. As vítimas podem ser qualquer uma delas, entre 1991 e 2012”, escreveu o padre (sublinhado a amarelo), referindo-se ao período em que dirigiu o orfanato Topu Honis, em Oecusse.

O Vaticano expulsou-o do sacerdócio, a justiça timorense meteu-o na cadeia, mas Xanana continua a dizer que o padre lhe merece respeito.

Enquanto o padre Dashbach preferia as meninas do orfanato, o bispo Ximenes Belo é acusado de abusar de rapazes. No documentário, as vítimas de Ximenes são rapazes e descrevem explicitamente atos de abuso como, por exemplo, sexo oral.

tradução do sublinhado a azul: “o bispo tirou-me as calças, iniciou toques sexuais e fez sexo oral comigo”, disse Paulo.

Ximenes nunca foi julgado pela justiça dos homens, embora o Vaticano tenha decretado a sua expulsão de Timor-Leste e a proibição de se aproximar de crianças.

Os abusos sexuais contra crianças na Igreja Católica timorense é tema tabu e tanto as vítimas como os que investigam esses casos correm sérios riscos. Quando os alegados criminosos beneficiam de apoios dos dirigentes políticos e do encobrimento da Igreja Católica, fica fácil ameaçar sem receio de virem a ser penalizados. O documentário apresenta o caso do jornalista português António Sampaio, à época correspondente da agência Lusa. Depois das primeiras notícias sobre os alegados abusos, Sampaio foi ameaçado.

Ameaças contra António Sampaio surgiram nas redes sociais, com alegações de que queria “destruir a Igreja católica” e que os artigos dele eram fakenews, exigindo que fosse expulso de Timor-Leste

Mas alguém deve ter percebido que forçar a expulsão de um jornalista estrangeiro era má ideia porque revelava a intenção de esconder o caso. Seria preferível impor silêncio por outras vias. E foi isso que fizeram.

Há mais de uma dúzia de padres católicos indiciados por abusar sexualmente de menores. As vítimas falaram, mas os alegados abusadores nunca foram julgados. O poder político não quer mais casos como os do padre Dashbach ou do bispo Ximenes Belo, até porque o próprio Xanana Gusmão parece ter um lado negro, neste capitulo do assédio sexual.

XANANA GUSMÃO, instinto predador (duaslinhas.pt)

O documentário da Al Jazeera está no YouTube, falado em inglês e tétum. Não há nenhuma versão em português. Os que puderem, vejam.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Um grande texto, acompanhado de um trabalho de investigação exaustivo e independente.
    A complexidade dos temas aqui tratados é de fazer reflectir.
    De facto não se deve acusar sem provas, mas os testemunhos de jovens abusadas, que falam em nome próprio e no de todas/os que não terão coragem para o fazer, deve valer alguma coisa. Não estarão a exibir-se.
    Depois o padre confessou, está a cumprir pena por isso mesmo. Não deve ter confessado por divertimento. Ao menos teve um rasgo de consciência que outros não têm. E deviam ter, não para destruir a fé, mas para dignificar a fé dos genuínos crentes.
    Nem todos os crimes de violação sexual são facilmente comprováveis, se não deixarem marcas visíveis. Mas as outras? O que será dessas crianças, dependentes do abrigo e do alimento de “guias espirituais”, que não sabem o que é ser criança, nem são adultas, embora usadas como tal?

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