Qualquer lavrador não pararia assim a tarefa para se agachar e tirar da terra, toda suja, aquela lata velha. José António, porém, já não era, na circunstância, um lavrador qualquer. Sempre se interessara pelo que via, tipo coca-bichinhos. Não era de ontem apenas esse seu hábito de apanhar pelo caminho um graveto aqui, curiosa pernada acolá, aquela tábua fora do comum que aventaram fora, inútil que era. Agachou-se, pois, e agarrou o pedaço de lata.
Quando chegou a casa e a limpou, acabou por verificar que era bem antiga, de zinco, da companhia de seguros Fidelidade. Lá estava o nome em relevo, a data da fundação, 1835, o cão serenamente sentado e vigilante a simbolizar a fidelidade, apanágio preconizado para a empresa. Tudo em relevo, ainda que amolgado pelas tropelias das muitas lavouras por ali passadas.
Mostrara-me José António os trabalhos manuais com que entretinha parte dos seus dias, já de reforma. Publicara-se-lhe o livrinho autobiográfico Os Espinhos no Caminho na Vida de Roger. E, numa das mensagens, acabou por mostrar-me também a fotografia da chapa. Perguntei-lhe se a queria para alguma coisa e se não se importava que eu lhe pudesse dar algum destino.
O resto já o leitor do Duas Linhas sabe, porque lhe dei a conhecer o assaz eloquente diálogo que travei no chat da Fidelidade. Houve oportunidade de – refeito da conversa com o robô – falar mesmo com uma assistente de carne e osso; enviei depois imagem da placa; tive imediata resposta afirmativa: «Sim, Amigo, pela sua antiguidade e apesar do mau estado, aceitaremos de bom grado a placa para a nossa colecção museológica.
E, assim, no passado dia 21, Vítor Alegria, em representação da Fidelidade, veio receber das mãos de José António Gonçalves a «velharia», uma tarde achada nas terras da Quinta de Vale de Cavalos, ali pró sopé meridional da Serra de Sintra. No seu tempo de vida identificou, orgulhosa, o prédio que o manto da seguradora e seu cão bem haveriam de guardar. Agora, vai figurar entre as peças que apontam as fases por que a imagem da empresa passou.
José António Gonçalves continuará ainda mais atento às coisas velhas que o dia-a-dia lhe vai proporcionando. Agora, ainda mais contente porque uma delas acabou por ser bem acolhida – e tem uma deveras interessante história para contar!
Que bonita história, José d’Encarnação. E nem sequer ficcionada.
Talvez as pessoas achem que aqui não faz sentido aquela máxima que nos ensinavam “guarda o que não presta, encontrarás o que te é preciso”.
Eu era das pessoas que achava um contrassenso encontrar-se alguma coisa de prestável, naquilo que não prestava, mas este caso curioso vem demonstrar-me o contrário: este lavrador encontrou na vida os prémios mais valiosos: a edição da sua autobiografia, e uma relíquia que hoje figura num Museu, certamente com o nome de quem ajudou a preservá-la.
Se ainda revolve a terra à procura de mais tesouros, sempre dará razão a outro velho provérbio, aqui mal comparado: “quanto mais têm, mais querem”.
Mas faz ele muito bem. “Quem porfia sempre alcança” dizem, e um dia ainda encontrará, na Quinta de Vale de Cavalos, um maravedi que valha uma fortuna.
Eu sem querer encontrei a meada dos aforismos de que raramente me lembro. E sem mais riqueza do que os neurónios activos, já me sinto vencedora.
Muito grata, meu Amigo. O caos da vida precisa destas pausas que lembram a pacatez de antanho.