O País dos Brandos Costumes

Na sexta-feira, dia 26 de janeiro, ouvi horrorizado a notícia do aluno de 11 anos que foi sodomizado por oito colegas numa escola de Vimioso. Antes de continuar, importa fazer um disclaimer importante: sou biólogo marinho e empresário há 30 anos, professor de ensino superior e orador motivacional há 20, mas não tenho qualquer treino formal em psicologia ou qualquer outra ciência que me torne numa autoridade na avaliação dos factos com que abri estas linhas. Contudo, as três décadas de carreira referidas, muitas das quais a gerir equipas e/ou alunos, aliadas ao facto de ter sido pai há quatro anos e meio, clicaram-me no botão ‘Responsabilidade Civil’, o que me levou a redigir os pensamentos que partilharei em seguida.

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Ao ouvir uma notícia de tal forma hedionda, procurei por mais informação nas plataformas habituais que, de forma mais ou menos uniforme, citavam a agência Lusa como fonte. Nas várias notícias que li figuravam detalhes como:

1 – “os oito colegas tinham idades entre os 13 e os 16 anos”;

2 – “um dos colegas é irmão da vítima”;

3 – “o presidente da Junta de Freguesia de Vimioso, José Manuel Alves Ventura, denunciou “um clima de terror e de encobrimento” que, alegadamente, se vive no Agrupamento de Escolas de Vimioso, relatando vários casos de violência entre alunos, entre alunos e funcionários”;

4 – “Várias fontes ouvidas pela Lusa confirmam que o episódio de sodomização ocorreu cerca das 12:30 [do dia 19 de janeiro] no interior do estabelecimento de ensino, “com recurso a uma vassoura” e na presença de, pelo menos, uma funcionária, que “nada fez” para travar os supostos agressores”;

5 – “Segundo estas fontes, policiais e locais, dois dos agressores têm 16 anos – já respondem criminalmente – e os restantes entre 13 e 15 anos, acrescentando que, passado uma semana, tanto os alegados agressores como a vítima, continuam a frequentar o mesmo estabelecimento de ensino.”;

6 – “Em resposta enviada à Lusa, o Ministério da Educação (ME) diz que foram sinalizadas pelo Agrupamento de Escolas de Vimioso “duas situações”, sem especificar quais. “Que espoletaram de imediato, e ao tomar conhecimento do sucedido, a instauração de 10 processos disciplinares a alunos que terão estado envolvidos no caso de aluno que terá sofrido a alegada agressão. O caso encontra-se sob a esfera do Ministério Público e mereceu intervenção da Polícia Judiciária”, refere o ME.”;

“A Lusa questionou o Agrupamento de Escolas de Vimioso, mas até ao momento não obteve respostas, e tentou contactar, várias vezes, a diretora Ana Paula Falcão, mas até ao momento, também não atendeu as chamadas.”

A fonte da informação anterior é esta notícia, mas existem muitas outras nas plataformas online.

Mas, a seguir, ainda li “Um dos alegados agressores da criança de 11 anos sodomizada “com recurso a uma vassoura”, na escola de Vimioso, no distrito de Bragança, é o irmão da vítima, avança o presidente da Comissão de Proteção de Crianças de Jovens (CPCJ) de Vimioso, António Santos, à CNN Portugal. As autoridades falam num clima “de terror e de encobrimento”. Os alunos mais novos “andam assustados” e os suspeitos “sentem que são impunes” porque “ninguém lhes põe travão”. A fonte desta segunda notícia foi a CNN Portugal.

Bom… Por onde começar?…

Em primeiro lugar: o que fazem os agressores ainda na escola? Repito o meu disclaimer inicial e admito que não conheço formalmente o conjunto de actos que levam um grupo de alunos a serem sumariamente expulsos de um estabelecimento de ensino, mas ficarei muito desiludido se a sodomização de um colega com um cabo de vassoura não figurar nessa lista.

Em segundo lugar: se indícios de corrupção levam a demissões nas mais altas esferas de governo, incluindo prisão preventiva de antigos primeiros-ministros, então o acto de sodomização de um jovem, com um cabo de vassoura, não deveria levar, no mínimo, a interrogatório imediato? E os agressores de dezasseis anos não deveriam ficar na ‘prisão juvenil’ – ou ‘reformatório’, ou lá como se chama – a aguardarem pelo desenlace da investigação? Ou, pelo menos, em casa com uma pulseira electrónica? Ou, pelo menos, fora da escola onde foi cometida a agressão? Mas quantas abébias mais é que se vão dar a estas criaturas?

Ao escrever estas linhas apercebo-me que as mesmas deixam transparecer uma dose de fel que as faz soar perigosamente próximas do discurso de um certo líder de extrema-direita que anda por aí a ulular discurso de ódio, quando lhe convém. E discurso apaziguador, quando lhe convém mais. Se essa ideia vos apareceu na mente, por favor pesquisem nas redes sociais o que escrevo sobre esse dito ‘líder’ há vários anos e verão que essa impressão desvanecer-se-á rapidamente, porque acredito piamente que até um Bonobo com hipermetropia consegue ver quão demagogo e vazio é o discurso da dita figura, que mais não quer do que angariar votos. Por outras palavras, diz o que os votos querem ouvir. Mas não conspurquemos o sofrimento do jovem de 11 anos de Vimioso, e respectivos pais, com essa tentativa infecta de chegar ao poleiro por parte de um galaró sedento de poder.

Por falar no sofrimento dos pais, não resisto a reacender o famoso caso dos seis estudantes que morreram na praia do Meco na noite de 13 de dezembro de 2013 e, para tal, reli esta notícia:

Lembro-me muito bem do que escrevi – e senti – na altura, quando ouvia frequentemente que o ‘Dux’ João Gouveia estava “demasiado traumatizado” para falar sobre o que tinha acontecido. A julgar pela notícia anterior levou sete anos para o fazer. Na altura eu não era pai, mas agora sou. Mesmo assim, o pensamento que me assaltava incessantemente era “Como é que os pais esperaram sete anos para saberem o que aconteceu?? Como é que se fica impavidamente à espera que o sobrevivente – e alegado cabecilha – “saia do trauma”??”

Embora a notícia de 2021 refira que, de acordo com o João Gouveia, o evento não esteve relacionado com praxes, eu lembro-me muito bem de quando isto aconteceu, em 2013, e de como o evento estava categoricamente associado a praxes, uma prática que está sobejamente incrustada de notícias de humilhações e maus-tratos nos campus universitários e militares. Mesmo assim, não houve umª reitorª que se atrevesse a abolir as praxes nas suas instituições.

Correndo o risco de parecer um cata-vento e desviar-me demasiado do tópico central, não resisto a ir buscar o igualmente triste episódio ocorrido quase exactamente um ano antes, em 14 de dezembro de 2012, na escola primária Sandy Hook, no Connecticut. Nesse episódio trágico, um jovem de 20 anos matou 20 crianças (com idades entre os seis e sete anos) e seis adultos, antes de se suicidar com um tiro na cabeça e depois de ter matado a mãe (a tiro) antes de sair de casa. Dias depois escorriam lágrimas pela cara do presidente Obama enquanto discursava acerca da falta de vontade dos restantes dirigentes da nação a que presidia em apertarem a legislação de controlo de armas. Não me recordo das palavras exactas mas a mensagem era de revolta profunda e professava consternação com o facto de um incidente de tamanho horror não ser suficiente para levar a uma mudança de paradigma imediata. “I guess [dizia ele] que somos uma nação onde algo como isto é aceitável, desde que continuemos a não ter controlo na aquisição e porte de armas.”

Entremos, finalmente, na fase de conclusão destas linhas, que já vão longas:

1 – Para os americanos, vinte crianças (e seis adultos) mortos não é um preço suficientemente alto para tocarem na legislação que controla a compra e porte de armas;

2 – Para os portugueses, dir-se-ia que seis estudantes mortos também não é suficiente para se tocar nas praxes ou no conceito de ‘protecção dos direitos das vítimas traumatizadas’, tendo em conta que os direitos do sétimo sobrevivente pesaram mais do que o direito ao esclarecimento dos doze pais dos seis mortos;

3 – Para os portugueses também parece que a sodomização – com um cabo de vassoura – de um jovem de onze anos às mãos de oito gandulos entre 13 e 16 também não é suficiente para os expulsar da escola, onde a vida continua como se nada tivesse ocorrido e a directora prefere não comentar.

Como pai em primeiro lugar, como cidadão que paga (muitos) impostos em segundo e, em terceiro, como ser humano que tenta viver aplicando a máxima milenar “trata os outros como gostas que te tratem”, tudo isto me choca. Profundamente.

Entendo que tenhamos de respeitar os direitos dos agressores. Também entendo que já não somos neandertais que apedrejam quem é apanhado em flagrante delito e ainda bem que deixámos de ser. Mas, caramba, se calhar desviámo-nos demasiado desse caminho de justiça hamurabiana de ‘olho por olho, dente por dente’ e deixámo-nos cair na total complacência e aceitação do que é indiscutivelmente inaceitável.

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