Uma tradição brejeira!

Amiúde, basta um pormenor e logo a partir dele se forja uma história. Se puder incluir algum toquezinho brejeiro e a aproximação a algo passível de ser tido como sagrado… melhor!

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1854

Numa das quintas da povoação de Moimenta da Beira, existiu célebre convento beneditino de monjas, tendo como patrona Nossa Senhora da Purificação.

Foi seu fundador o padre Fernando Mergulhão, a quem o Papa Clemente VIII concedeu, em 1594, breve para a sua criação, sendo as três primeiras monjas as irmãs do fundador, transferidas, a 17 de Junho de 1596, segundo rezam as crónicas, do convento de Semide, perto de Coimbra, onde haviam professado. Sabe-se ter sido D. Isabel Mergulhão a sua primeira abadessa, que viria a falecer a 14 de Novembro de 1604; e um documento de 1650 informa ter, então, o convento, «três lanços de dormitório, com quarenta celas todas ocupadas».

A fachada do mosteiro

Problemas terá havido depois, que levaram o bispo de Lamego a decretar o seu encerramento, em 1812, tendo as freiras sido transferidas para o Convento das Chagas, de Lamego.

Tinha o mosteiro, como é da praxe, além da parte edificada, a sua cerca, propícia à meditação, ao contacto com a natureza e, inclusive, a horta para abastecimento quotidiano. Nela perene gorgolejava, sem dúvida, a água dalgumas fontes, ornadas, como sempre, das esculturas próprias da época, frequentemente alusivas a figuras da mitologia grega e latina, estávamos, recorde-se, nos tempos do enlevo pela Antiguidade Clássica.

Fonte da Pipa – uma das existentes na cerca

Ora acontece que, um dia, alguma dessas esculturas se danificou e dela se fizeram pedaços reaproveitáveis na obra de consolidação do muro. Então não é que, por não se sabe que artes – se casuais ou propositadas – um dos fragmentos, este cujo perímetro abdominal chega a ter um metro e tem pouco mais de 30 cm de altura, foi postado em posição susceptível de dar azo às mais brejeiras congeminações!… «Cu da Canoa» de imediato o Povo o baptizou, tendo havido quem, para melhor sugestão, lhe tivesse adicionado um pouco de esclarecedora tinta! E assim se pôde ver, durante muito tempo, por alturas do nº 323 da Rua Visconde de Moimenta da Beira.

O local onde o cu esteve durante séculos virado para a rua no muro da cerca do convento

Ainda não logrou descobrir ao certo quem terá sido a Canoa. Sabe-se que monja não foi, mas bem conhecida aldeã, muito popular, e decerto a alcunha lhe adveio por ser de pequena estatura.

Em todo o caso, ainda que mal enjorcado e sem dele se bem perceber, por enquanto, que parte de um corpo poderia este polido fragmento de granito branco representar, optou-se por o transportar para bom recato, uma vez que o muro já se encontra também em mau estado de conservação. A pedra estava completamente desprotegida, corria o risco de levar sumiço e, por conseguinte, a Junta de Freguesia de Moimenta optou, em finais de Dezembro passado, por a guardar, ainda que provisoriamente, na sua sede. Mais não seja que para documentar esta bem picaresca tradição oral.

Os dois lados do mesmo fragmento escultórico

E quiçá algum estudioso dessa nobre arte escultórica consiga dar-lhe uma orientação, a fim de melhor se entender se é mesmo dessa parte do corpo que temos ali um pormenor!…

(em co-autoria com José Carlos Santos)

(atualização aqui)

3 COMENTÁRIOS

  1. A divulgação desta singela crónica permitiu obter dois esclarecimentos.
    Primeiro: não há propriamente um nº 323 na rua onde a pedra se encontrava: é que essa rua coincide com a Estrada Nacional nº 323.
    Segundo, muito mais interessante, porque se coaduna com o que não é raro acontecer em povoações onde todos se conhecem: a Canoa era uma senhora casada, anã! Daí a alcunha. Os anões constituem sempre motivo de ternura e, por vezes, de alguma maldade por parte dos seus vizinhos, mas não só não passam despercebidos como se tornam verdadeiros ‘personagens’. Todos conhecemos «O Corcunda de Notre Dame» – que era… anão!

  2. Foi com muita curiosidade que li o presente artigo e, quanto à parte do corpo a que corresponderá o fragmento da estátua, apenas posso confirmar que me parece, realmente ser o fundo das costas de uma senhora, sendo a parte oposta as pernas, uma dela coberta por tecido, vendo-se logo acima o umbigo. Seria a representação de alguma ninfa? Será fragmento de uma estátua, não do séc. XVI, mas bem mais antiga, quiçá romana e pertencente a um ninfeu de uma antiga villa romana que possa ter existido em “Monumenta” e que no séc. XVI foi descoberta e reaproveitada para se fazer a cerca do convento?

  3. Bem haja, Gustavo, pela sua oportuna observação, que tem toda a razão de ser; aliás para essa direcção apontávamos. Gostei também da sua hipótese – em que não tinha pensado – de o topónimo Moimenta ter como origem etimológica a palavra latina ‘monumenta’, monumentos (em português).

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