Quero é viver

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Cada vez mais, e ainda bem, as pessoas falam dos seus derrapanços. Tiveram de engolir a vergonha e uns comprimidinhos supostamente milagrosos. Têm de ter amigos e/ou familiares por perto. Regra geral conseguem voltar à casa da partida. É quase sempre um conjunto de circunstâncias que as fizeram derrapar: desilusões amorosas, o ordenado que nem desfiado em esparguete chega, a rotina, o ritmo de vida a sprintar, a lista é interminável.

Mas algumas descem pelo buraco negro. Como é? É o domínio da indiferença, a incapacidade de falar sobre que o que quer que seja. Estás em coma mas de olhos abertos. E há uma heroína, má, muito má mesmo, sempre disponível a ir a jogo. Tem o poder de te mudar, adora jogar cartas, faz sempre batota. Atua na tua cabeça,  governa todo o teu corpo, o teu ser, quem tu és. Vais a jogo mas perdes tantas vezes que te perdes a ti. E lá vais descendo pelo buraco negro.

E não, “não vou perguntar ao mais vidente se o meu destino será sorridente”. Nada nem ninguém te consegue salvar, ninguém sabe “que solidão é essa que te põe a falar sozinho”.

O buraco negro não tem paredes, janelas, não há luz ao fundo do túnel, antes labirintos  intermináveis. É como estar na solitária da prisão. Não tens nada, não vês nada, paras de gritar porque a determinada altura, quase enlouqueces. Estás em coma de olhos fechados. Tudo é uma ilusão que inventas para sobreviver mas a cabeça, apesar de estar fechada num saco de serapilheira, continua a mil.

A heroína má, muito má mesmo, põe-se à vontadinha, toda contente, e dá-te um assunto sério para pensar. Cada vez que tentas sair dele, ficas ainda mais presa.

Os pensamentos ganham força, cada um é mais rebuscado do que o anterior, a solução é evidente, já sabes como vais sair, vai ficar tudo resolvido! E continuas a elaborar a coisa como se fosses assaltar um banco. Pensas em todos os pormenores, não podes falhar, só queres sair dali para fora, custe o que custar. Queres dizer adeus a tudo e todos mas não há luz ao fundo do túnel, tudo é dark. “Diz-me que tristeza é essa que levas no teu olhar. Que ansia e que pressa queres alcançar?” .

Os outros preocupam-se, entendem ou fazem por entender o autismo. “Que viagem é essa em que te diriges em todos os sentidos, andas em busca dos sonhos perdidos.” Percebi que era capaz de levar em diante a decisão dark, gritei pela ajuda dos amigos, chamei um treinador, vi finalmente uma luz ao fundo do túnel e o corpo, sempre em estado negro-depressivo, dorido, relaxou. Deixei de sentir o cansaço extenuante, o sofá aparou-me durante três dias. A cabeça também abrandou e, tirando uma das minhas circunstâncias que ficou resolvida, as outras ficaram todas no mesmo lugar, por resolver.

A heroína má, muito má mesmo, deixou-me dormir 16 horas seguidas. Não conseguiu acabar com o cansaço que ainda se estica no sofá.  Ela, a heroína má, muito má mesmo, ao quarto dia deixou-me levantar para fazer um café, só para me enganar, baixar a guarda pois, pensava ela, que eu acreditava que estava tudo bem. Não está nada tudo bem! E sou uma heroína, estou à tua espera, sua puta do caralho!

Venci uma batalha, não a guerra, mas saí do buraco, venci o dark side, pelo menos desta vez.  E “aqui estou mesmo que só até amanhã, mesmo que saiba como o tempo foge”.

Fui parar duas vezes (contando com esta) ao buraco negro, jurei que nunca mais ia acontecer mas não contei com a heroína má, muito má mesmo, que continua à espera de uma oportunidade.

“É para amanhã mas podias fazer hoje, porque amanhã não sabes se vais  cá estar”. Sim, mas a recuperação do buraco negro não se pode apressar. O corpo e a cabeça trabalharam desenfreadamente. Precisam de dar vagar ao vagar. No entanto tem de se ir andando para a frente, devagarinho, mas para a frente.

Por falar nisso, consegui montar e descobri o lugar ideal para o candeeiro alto. Uma façanha! Consegui ler um pouco, enviar emails e documentos da agenda. A minha boss é uma querida e deu-me espaço.

Fiz uma canja e, sem forças para tal desejei arroz doce, precisava do vagar. Fi-lo e comi-o todinho! E hoje até fui jantar com um amigo.

Estou a sair do buraco negro e quero acabar com a Estrela da Morte do Star Wars. Afinal tinha um ponto fraco, e a Resistência inteira que a conseguiu destruir. Quem me dera estar lá. O sacana do Darth Vader safou-se, desta vez. Não serão todas as vezes,  há-de morrer, por amor, esse sabre letal.

Não gosto de tocar nestes assuntos, só a mim dizem respeito, mas talvez ande alguém por aí que só consiga ouvir esta música perfeita: “vem que o amor não é o templo que o faz. Vem que o amor é o momento em que eu te dou, em que te dás. Tu que buscas companhia, eu que busco quem quiser, ser o fim desta energia, ser um corpo de prazer”. Espero que ajude, que seja uma luzinha, o amor salva, tudo e todos.

Eu… eu “tenho um anjo da guarda que me protege de noite e de dia”. O meu António!!!! Como me esqueci dele???

Corri para a sala, ele sentado no sofá. Agarrei-me ao meu verdadeiro herói, chorei eternamente, sem derramar uma lágrima, o corpo ainda não tem forças para tanto.

Convenceu-me a deitar na cama, abraçou-me. Quando estava quase a adormecer cantou em surdina.

"Vou viver até quando eu não sei,
que me me importa o que serei, quero é viver.
Amanhã espero sempre um amanhã 
e acredito que será e acredito que será mais um prazer."
Dedicado à Alexandra Quesada e ao amigo de sempre.
(Citações e música de António variações)

1 COMENTÁRIO

  1. Fantástico texto. Expõe, sem rodriguinhos, uma matéria densa, actual, numa articulação original das ideias.
    Parece haver da autora um conhecimento próximo desta realidade, fundamental para a dissecar de forma tão detalhada.
    Parabéns à Sónia Andrade e um ano verdadeiramente novo em projectos.

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