Já aqui se falou da herança árabe em termos complacentes. E admiro-me sempre quando penso na estranha atitude de Nicolae Ceauşescu, presidente romeno, ao apoiar a construção, em Adamclisi, da réplica do Troféu que o imperador romano Trajano mandou erguer, nos primórdios do século III, para comemorar a sua vitória sobre os Dácios. Ora, os Dácios são os antepassado dos actuais Romenos, tal como nós dizemos serem os Lusitanos em relação aos Portugueses. Mas há lá jeito em o vencido querer replicar o monumento símbolo da sua derrota?
Afinal, porém, bem vistas as coisas, a atitude talvez acabe por não ser tão estranha assim. Não respeitamos nós o templo romano de Évora? E não foram os Romanos que mataram Viriato e Sertório, chefes dos guerreiros lusitanos, os símbolos da nossa vontade de autonomia, para se apoderarem do que não era deles? Não foi isso uma… invasão, do género daquelas que, hoje, amaldiçoamos? Foi. Foi uma invasão. E só podemos agora, de certo modo, aceitá-la – que não justificá-la – por daí terem resultado benefícios e, queiramos ou não, deles hoje usufruímos e os consideramos nossos e dignos de conservação e reabilitação os vestígios dessa ocupação. Pois é, comentaria Camões, «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»!…
Surgiram-me estas reflexões, ao ver o enlevo com que Gonçalo Pereira Rosa programou e concretizou a edição do número especial (nº 43, 2023) da revista National Geographic, dedicado à Hispânia Romana.
Bem andou, afinal! Porque, na verdade, ao tomarmos conhecimento dos importantes vestígios, ora em fase contínua de descoberta, acabamos por sentir o nosso ego titilado: «os Romanos somos nós!» – quase apetece proclamar, tamanha foi a herança recebida: na língua, no direito, na administração publica, na cultura!…
Profusamente ilustrado, este volume de 140 páginas recebeu a prestimosa colaboração de conceituados investigadores peninsulares, especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento histórico, os quais, em linguagem acessível, sem menosprezarem, contudo, o rigor científico, se referem às descobertas mais recentes. As manifestações da religiosidade, o cultivo da terra, a criação de gado, a vida publica, os monumentos mais significativos… são, pois, temas aqui tratados, para que se tenha uma ideia de como então se vivia.
Apeteceria comentar, uma a uma, cada uma dessas contribuições. Na impossibilidade, vamos cingir-nos apenas a um domínio que, embora aparentemente fúnebre, muito nos ajuda a compreender a vida desses nossos antepassadas: o mundo da morte, aliás, hoje tão em voga por via das centenas de vidas que as guerras e as doenças estão ceifando.
Assim, um domínio cujos resultados ora estão a ser alvo da maior atenção é o meticuloso estudo das ossadas. Lê-se, no título da p. 129: «As histórias de vida gravadas nos ossos». E, de facto, é verdade: os dentes, por exemplo, além de indicadores da idade, denunciam o tipo de alimentos que prevaleceu.
E se as imagens dos mosaicos retratam instantâneos da vida quotidiana (o regresso do caçador, a pisa da uva…), as inscrições permitem-nos penetrar ainda mais fundo nesse dia-a-dia de outrora. Não deixaremos, assim de sorrir, ao ler o epitáfio achado em Porcuna, na Andaluzia, em que o defunto, Marco Pórcio, determina que os herdeiros «vertam vinho sobre os meus ossos para que a minha alma revolva sobre eles ébria como uma borboleta» (p. 125).
Por outro lado, os recursos informáticos propiciam verdadeiros milagres, como a reconstituição virtual duma quinta, a partir das estruturas meticulosamente postas a descoberto, como, até, a reconstituição da possível fisionomia duma pessoa a partir do crânio que se encontrou.
E assim: «Num passeio por uma villa ou uma cidade romana, ficaríamos certamente impressionados com a diversidade de rostos e cores de pele. Os estudos biométricos dos esqueletos de sítios arqueológicos como Carissa Aurelia, em Cádis, apontam para um intenso movimento de pessoas, provenientes dos confins do Império – do Norte da Europa à África Subsaariana. Talvez fosse uma sociedade tão diversificada como a que hoje encontramos em Lisboa ou em Madrid» (p. 135).
No fundo, uma inesperada viagem, esta, a um passado de há mais de dois milénios.