O massacre de 49 gays

Foi, sem dúvida, momento de emoção, sublinhado por aplausos, o descerramento, na noite de 27 de Janeiro, da placa com o nome de Carlos Avilez, atribuído pela Câmara Municipal de Cascais, sob proposta da Fundação D. Luís I, ao auditório da Academia das Artes do Estoril (Edifício Cruzeiro, no Monte Estoril).

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O átrio estava repleto de amigos e admiradores do encenador que há pouco nos deixou. Muita gente do Teatro, sobretudo, além das autoridades locais ligadas à Cultura.

Seguiu-se a representação da peça «A Andorinha», do dramaturgo catalão Guillelm Clua, nascido a 13 de Junho de 1973. A encenação é de Cucha Carvalheiro, tradução de Miguel Graça, cenografia de Fernando Alvarez, canção original de Tiago Machado e participação especial áudio de FF.

Em cena, durante todo o espectáculo, Luísa Cruz e José Condessa, que – ouso acrescentar desde já – constituem sérios candidatos ao galardão de melhores actores do ano, atendendo à excelência das suas interpretações. Bastará dizer que, ao contrário do que poderia esperar-se, dada essa circunstância de um permanente diálogo unicamente a dois, os espectadores jamais deram mostras de cansaço, de menor atenção ou de menor sintonia.

Na cidade de Orlando, nos Estados Unidos, em 2016, um fanático entrou numa discoteca, na altura frequentada por homossexuais e desatou a disparar indiscriminadamente, matando 49 pessoas.

as vítimas do massacre de Orlando

O caso inspirou Guillelm Clua para pôr em cena a necessidade do respeito a ter em relação às tendências sexuais de cada um. Optou, pois, por imaginar que Ramón, aí presente, lograra escapar ao morticínio por o seu amigo se haver postado diante do atirador, morrendo em seu lugar.

É, pois, Ramón que, a pretexto de receber lições de canto, vai ter com a mãe do seu amigo. Era seu intento, disse, aperfeiçoar-se para interpretar bem «A Andorinha», a canção que a mãe lhe cantava para o adormecer e, no memorial a realizar em honra dela, ele desejava não fazer má figura.

Mal recebido, por não ter a voz bem colocada, acaba, pouco a pouco, por lograr que a lição se prolongue o bastante para que Amélia, a professora, fique a saber o que realmente aconteceu, ela que não aceitara lá muito bem a orientação do filhote assassinado. Aliás, nem lograra aperceber-se bem, na altura, como é que exactamente tudo se passara. Compreende-se, pois, a densidade do diálogo entre os dois, a vivacidade da troca de argumentos, o íntimo enleio entre as diversas ‘tonalidades’ (digamos assim) do amor.

Uma hora e quarenta minutos sem intervalo – não poderia haver pausa, cortava-se o fio à meada! – em que dois mundos, duas gerações e duas mentalidades se digladiam, para, no final, sobressair, em clima de (agora, já natural) serenidade, a plena aceitação do Outro como ele é.

Escreve-se no convite que este é «um elenco extraordinário desejado por Carlos Avilez». Não me custa a crer. Primeiro, porque o jovem José Condessa, formado na Escola Profissional de Teatro de Cascais, já dera provas bastantes de ser actor à altura de arcar com tamanha responsabilidade, a contracenar com uma actriz, Luísa Cruz, de largo palmarés (recorde-se que, licenciada em Teatro e Cinema pelo Conservatório Nacional de Lisboa, recebeu, em 1989, do semanário Se7e o prémio de Actriz Revelação). Depois, porque é este um tema de intervenção e nessa linha sempre se pautou a companhia do Teatro Experimental de  Cascais.

«A Andorinha» estará em cena, no Auditório Carlos Avilez, até 11 de Fevereiro.

1 COMENTÁRIO

  1. Pela leitura deste texto, quero muito ver A Andorinha e testar a intensidade dramática deste diálogo.
    Suponho que também deva encerrar ternura, talvez raiva (ou sentimentos contraditórios por parte de Amélia, mãe do jovem cuja orientação sexual ela condenava em vida). Talvez um doloroso constrangimento na “encenação” de Ramon para que, invocando a necessidade de aprender uma canção da infância, pudesse revelar como foi salvo pelo carácter magnânimo do filho da professora.
    A causa (combater a intolerância de boa parte da sociedade…chamar a atenção para o respeito pela sexualidade de cada um) já seria um forte ingrediente para querer assistir, mas eu já vi trabalhar os dois actores e acredito que sejam excepcionais.
    José Condessa era bem jovem quando o seguia lá mesmo, no Teatro Mirita Casimiro, sempre muito bem enquadrado por elencos fortes. Luísa Cruz, conhecida por um trabalho de excelência firmado ao longo de anos.
    Muito grata, José d´Encarnação. Gostei muito de ler o texto e de ficar actualizada.

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