Outro dia, decidi guardar um pequeno parafuso no boião dos parafusos. E diz-me a Lucinda: «Pois, vai guardar; mas, quando precisar, é capaz de não saber onde guardou e corre à drogaria comprar, porque é mais fácil do que tentar saber onde é que está».
Assim acontece, mas não resistimos a ir guardando, até ao dia em que nós – ou os nossos herdeiros (quando os há) – decidimos dar volta ao sótão ou à arrecadação e a maior dos ‘guardados’ vai para o lixo.
Lembro-me do Mariguta da minha infância. Nunca lhe soube o nome. Adorava ouvi-lo apregoar ‘Ferreveeelhe!’. Meus pais davam-lhe ou vendiam-lhe trastes que não usavam já. Hoje, a profissão de ferro-velho não é comum, nada comum, a não ser para o ramo automóvel. Prefere-se arranjar uma banca, montá-la na Feira da Ladra ou numa dessas que vão surgindo como cogumelos por toda a parte. Em Cascais, por exemplo, no Jardim Visconde da Luz aos sábados (creio), no Jardim da Parada, no próprio recinto da feira (em redor do mercado municipal)… O pessoal lá vai sabendo quando e onde há esses mercados (ai, o Marché aux Puces de Paris!…) e tenta desenvencilhar-se.
O busílis está nos livros e revistas e outros papéis. Não há espaço em casa nem debaixo da cama ou por cima dos móveis. Depois, os livros são pesados e a gente ou já os leu ou já não tem tempo para os ler, que o Facebook e as «redes sociais» preenchem satisfatoriamente os momentos livres do dia. Não há pachorra para ler uma ou duas páginas no metro ou no autocarro; o telemóvel supre bem.
Portanto, tudo o que é livro ou jornal ou revista ou papel antigo arquivado em dossiês tudo corre sério risco de ir para junto de um contentor e quem quiser que aí se avie.
E é aqui que surge o milagre da Ephemera, a luminosa ideia de José Pacheco Pereira! Tudo o que é ‘efémero’, ou seja, quase momentâneo, serve hoje e amanhã já não, no domínio sobretudo da papelada, tem acoito nesse ‘arquivo de tudo’ que Pacheco Pereira em boa hora inventou.
Recordo-me que andei meses à procura de alguém que quisesse ficar com uma colecção de revistas de bom nível que uma entidade bancária adregara editar. Mensagens nas redes sociais, conversas com amigos… nada! Ninguém estava interessado! Até que alguém me perguntou: «Já tentaste a Ephemera?». Não tentara. Tentei. Fiquei com o problema resolvido.
Aliás, já aqui houve oportunidade de falar nesse assunto de guardar a memória e se disse como se salvara o espólio de Giacometti.
Em entrevista concedida à utilíssima 30 Dias, a agenda cultural (também em papel) do município de Oeiras, deste mês de Janeiro de 2024, conta José Pacheco Pereira como é que tudo apareceu, o que será bom fazer de futuro e ilustra com algumas histórias deveras elucidativas:
«Encontrámos uma correspondência entre dois namorados, que é, aliás, o nosso maior sucesso editorial, que se chama ‘Amorzinho’. É uma correspondência amorosa e é muito interessante sobre a condição feminina, porque ela é uma rapariga que começa a namorar com 15 anos, não sabe nada da vida, ele sabe de mais e ela vai aprendendo, vai ganhando manha». «É um conjunto de quase 600 cartas e nós temos as dele e as dela, o que também não é comum, e estavam metidas na gaveta de um móvel que ia para o lixo».
«Recuperámos todo o arquivo da sede do CDS em Coimbra, quando ele foi deitado ao lixo. Uma senhora aqui de Oeiras, por acaso, acordou de manhã, abriu a porta e viu um monte de dossiês que a vizinha tinha deitado fora, Chamou-nos, a gente foi lá buscar, era todo o arquivo da história da agricultura de Angola dos anos 50, 60».
Duas sugestões, portanto:
- Tente ler a entrevista em que José Pacheco Pereira fala dessa «obra de loucura mansa». Aceda, se não tiver a edição impressa, a: https://www.oeiras.pt/-/agenda-roteiro-cultural-30-dias-edicao-247-janeiro-24
- Consciencialize tudo quanto ali se diz e faça-nos um favor: quando não tiver já lugar para pôr os livros e/ou revistas e jornais, panfletos e quejandos, e a biblioteca ou o arquivo municipal da sua residência não os quiserem, entre em contacto com a Ephemera (935551816; ephemerasecretariado@gmail.com). Estou certo que o seu problema deixará de existir.
De : Frederico Corado
Data: 19/01/24 15:38 (GMT+00:00)
Caro José D’Encarnação
Obrigado por este texto.
Faço um trabalho titânico no Centro de Documentação Carmen Dolores na Casa do Artista a tentar salvar a memória dos Artistas Portugueses. Muita coisa a ser deitada fora por famílias que não sabem o que têm em casa, algumas não querem saber, outras pura e simplesmente desconhecem.
Nós fazemos os possíveis por aqui.
Um abraço
Frederico Corado