De cá estabeleci contacto com um taxista, de origens turca e arménia, um pouco antes de escolher alojamento. Uma amiga tínha-me dado boas referências do “rapaz” e talvez ele indicasse um hotel de confiança e barato na zona que eu preferia.
Lá estava ele à saída do aeroporto, com um cartão de razoáveis dimensões e o meu nome escrito com caneta de feltro: HELENA, como tínhamos combinado.
Era um jovem alto e bonito, de tez morena num rosto iluminado pelos olhos verdes e pela inegável simpatia. Durante a longa, e cara, corrida até ao centro da cidade, nunca se calou. Não a fazer perguntas indiscretas, mas a revelar as origens, as experiências de vida, a itinerância até chegar a Paris. Depois as informações que me interessavam: sim, garantia que o hotel, gerido por uma família de paquistaneses, era de confiança.
Reparei logo, na modéstia do hall de entrada, que não podia contar com muito conforto, mas como o jovem condutor dissera, era o que tinha melhor relação qualidade-preço para aquela zona de Paris.
Mal abri a porta do número…não sei qual, vi a casa de banho em frente. Duvidei se lá caberia, mas estava impecavelmente limpa. O quarto twin tinha porta com varanda para a rua, camas estreitas demais para o meu gosto e colchas de algodão azul desmaiado. Pouca mobília. Afinal nada mais podia ter um quarto pouco maior do que a casa de banho, mas a vista para a rua principal, valia alguma coisa….
Foi o recepcionista, já de meia-idade, que além do mapa indicou, no segundo dia, um restaurante na Rua de Mouffetard com boa comida francesa, como eu pedira. Ao almoço uma refeição volante e ligeira, enquanto fazia, sem pressa, o reconhecimento da rua.
Estava encantada com o mercado ao ar livre, com os produtos frescos que oferecia. E foi num carro de petiscos lá mesmo, que pedi pão com tomate e queijo fresco, salpicados de ervas secas e regados com azeite.
Passei pelo restaurante para onde me remetia. Tinha bom aspecto, uma sala ampla e arejada, uma lista de pratos típicos da cozinha francesa e outros comuns a muitos países. Estava decidido: seria lá o jantar.
Hesitei entre carne e peixe. Queria experimentar o pato à não sei quê…mas lembrando as más experiências da pele pouco tostada, acabei por escolher linguado acompanhado com batatinhas inteiras coradas e uma verdura salteada. Tão português, afinal. No fim uma sobremesa da irresistível doçaria francesa, e um copo de vinho bom, que deixo sempre quase cheio, mas de preço razoável.
Quando veio a conta, acrescentei umas moedas ao total, destinadas ao empregado, também de meia-idade e pouco sorridente. Enquanto ele virava costas, reparei que ia resmungando, em voz audível: “não sei para que deixam mais do que a conta…fica tudo para o patrão”.
Por cá sempre funcionou a gorjeta, quando o atendimento o justificava e a pessoa entendia dar. Ninguém sugeria que acrescentássemos algum valor à conta. Pasme-se que agora, em certos restaurantes mais “finos”, vem uma percentagem perfeitamente indicada na factura, embora o funcionário lembre, com certo constrangimento, que é facultativo.
Aconteceu duas vezes na vila de Cascais, a primeira no restaurante de um chefe famoso que lá abriu/remodelou um espaço. Se a comida estava boa? Tudo perfeito. A segunda vez teve lugar, no dia do meu aniversário, num restaurante implantado num complexo histórico e dependente de um grupo conhecido. E que tal a comida? Boa, sem ser excelente, os pratos com um preço quase igual aos do anterior restaurante.
As perguntas: se é facultativo, porque o lembram ao cliente? Com preços de pratos à volta de 24 €, sem contar com a sobremesa e bebida, precisam as pessoas e grupos importantes de sugerir a gorjeta? O que devemos pensar de tudo isto? Que os empregados são mal pagos e têm de complementar o vencimento com mais uns pós? Mas se a percentagem vem incluída na factura, será que têm liberdade para exigir o montante adicional? E sobre que rendimento incide o pagamento do IRS ?
Garantiram as pessoas presentes no “meu” almoço, que era um procedimento já usado em outras capitais da Europa e que estava a “pegar” em Portugal nos restaurantes mais famosos.
Tanto me dá a classificação. Considero uma vergonha a sugestão da gorjeta. E recomendo a quem assim procede, que olhe para o exemplo de outros espaços de restauração por todo o país. Há centenas com oferta igual, ou melhor, que sobrevivem dos preços indicados e que respeitam dois tipos de liberdade: a do cliente quanto à decisão de dar…e a do funcionário recolher para si e para os colegas (ou não) o reconhecimento compensatório da excelência do atendimento.
Tenho experiência idêntica à aqui descrita e tão bem pela Helena Ventura.
Sobre Paris não vou falar, é a cidade da minha paixão, nas sorte a da Autora por ter um bocadinho dessa Cidade para além das kuzes.
Já quanto à gorgeta subscrevo tudo, tudo mesmo.
Aproveito para agradecer este ” pedaço” de excelente prosa.
Muito bem, Helena Ventura Pereira! É uma questão e tanto, aqui tão bem tratada e que remete para o fundamental: é ou não um direito do trabalhador? Será ou não obrigação do utente? Esta não é, certamente, mesmo que venha “sugerido” na conta, quantas vezes tão injustamente quando comparado com outros restaurantes, como parece ser o caso.
Numa sociedade ideal, e por definição inexistente, o trabalhador receberia um salário justo e condigno, acharia a ideia de gorjeta uma ofensa. Nas nossas sociedades não é assim, os salários são modestos e tantas vezes insuficientes, o costume da gorjeta tem-se generalizado e é bem aceite, até esperado, pelo trabalhador. Costume, é talvez a palavra-chave.
Já a “sugestão” ao cliente, por parte
Questão bem pertinente. Consta ser facultativo, mas no fim vem o total, como devido (due)… Quem se dá ao ‘incómodo’ (sovina, segredariam lá dentro) de recusar e pedir nova factura?
Eu sou a favor da gorjeta (se ficar minimamente satisfeito com o serviço), mas como acto absolutamente espontâneo e sem sujeição a percentagem…
E, quanto ao relato, bonito!
Conclusão do meu comentário – Margarida Chagas Lopes:
…Já a “sugestão” ao cliente, por parte do restaurante, de deixar gorjeta, só posso interpretar como a admissão implícita de que tem consciência de pagar mal aos empregados e parece-me pouco ético.
Assunto de grande atualidade. Também não concordo com a gorjeta incluída na fatura. Só espontaneamente se o serviço o justificar.
A meu ver, é sempre mais simpática a caixinha com ranhura estrategicamente colocada. Como se está a pagar por via digital e como a gorjeta é algo de complementar e pessoal, alguns estabelecimentos já disponibilizam a função de a gorjeta ser faturada à parte. Ainda sou do tempo – não sei como é agora – em que, na roleta, a gorjeta era anunciada alto e bom som: ‘Gratificação!’