UM HOMEM DIFERENTE

Ainda bem que há centenários que não se deixam passar. Por vezes, são comemorados sem grande alarde e passam despercebidos. Quiçá esse tenha sido o de Mestre Isolino Vaz (Vila Nova de Gaia, 1922 – Lisboa, 1992).

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E nós ‘passamos’ amiúde por um dos mais conhecidos retratos de Miguel Torga, admiramos-lhe a boina basca, imaginamo-lo pensativo de costas voltadas pró mar – e nem reparamos na assinatura. É de Isolino Vaz esse quadro, carvão sobre papel, 1961.

retrato de Torga, Isolino Vaz

Conhecemos e admiramos a obra de Siza Vieira e nem nos perguntamos – ou raramente nos ocorre perguntar: «Quem foram os seus professores?». Um deles, Isolino Vaz.

De resto, no catálogo da exposição comemorativa do centenário do pintor, exposição que esteve patente no Museu Municipal de Faro de Novembro de 2022 a 21 de Maio passado, há um texto de Siza Vieira em que ele conta como foi uma lição a simples ida à praia de Leça com o mestre:

«Não se falou em desenho. Jogámos à bola e corremos contra o vento, até ao limite do fôlego. […] Provavelmente este exercício preparava uma nova aprendizagem: como fixar o carvão, que sempre ameaçava seguir a brisa sobre o Rio Douro».

Em muito boa hora se fez a exposição. E aqui, na capital algarvia, porque longo tempo passou o pintor, de férias, na sua casinha duma Ilha do Farol então quase deserta. Em muito boa hora, o Município farense, após ter patrocinado a exposição, houve por bem editar o respectivo catálogo, com a colaboração de entidades algarvias e da própria Associação Mestre Isolino Vaz. Aí se analisa a obra do artista, uma análise meticulosa gizada pelo historiador de Arte Daniel Santana; aí se transcrevem mui oportunos testemunhos, entre os quais o de sua filha Elsa Vaz:

«No Núcleo familiar eram incentivados e cultivados hábitos já herdados e que ficaram para a vida. Sobretudo o da leitura e de tempo na Natureza. Muitas vezes acompanhei o meu pai em visitas de estudo, exposições e viagens. Tive uma infância feliz entre livros, obras de arte e viagens».

Optou-se por apelidar aqui, no catálogo, Isolino Vaz como um «homem diferente». E é ele mesmo que assim se retrata em palavras, depois de amiudadas vezes se ter querido autorretratar em desenho:

«Nasci pobre, com os pobres convivi. O povo anónimo, sofredor e humilde na sua vivência (e não no cenográfico pitoresco, anedota), no seu dramático realismo, sempre me emocionou. Pode dizer-se que toda a trajetória de quanto realizei tem por base a injustiça, a angústia do homem da rua, a sua luta sem esperança».

Quem se interessar por Arte e tiver curiosidade em conhecer quem foi e como foi o professor de Siza Vieira e também de Joana Vasconcelos tem neste catálogo, além dos seus dados biográficos, boa ocasião de aprendizagem e – ousarei dizê-lo – de não menor deleite, ao rever, em magníficas reproduções, algumas das mais significativas obras do pintor, cujo génio ficou espalhado por muitos lugares públicos de Portugal, em painéis e em vitrais: no Palácio da Justiça do Porto, no Santuário do Monte da Virgem (Vila Nova de Gaia), na igreja de Pinhovêlo (Macedo de Cavaleiros), na igreja de Santo Ildefonso (Porto), no Museu Nacional Soares dos Reis…

O que atrás se transcreveu acerca da sua maneira de pensar está bem patente na sua obra: Isolino Vaz fez do lápis e do pincel armas contra a desigualdade social; chamando a atenção para a realidade sua envolvente – como era apanágio da corrente neorrealista que perfilhou – contribuiu, sem dúvida, para que ela fosse vista com um olhar mais penetrante. A força que dimana desses corpos, desses rostos, desses gestos não pode deixar-nos indiferentes. É o Povo na sua vitalidade maior! Mesmo a rachar o tronco ressequido da árvore, de forte machado na mão, o casebre ao fundo a fumegar, descalços ele e a mulher, mesmo nesse instantâneo, não é o casal pobre que assim labuta por ter com que se aquecer e cozer um caldo, é todo um Povo a labutar. E apetece recordar Carlos de Oliveira: «Não há machado que corte / a raiz ao pensamento / Não há morte para o vento / Não há morte». Das obras de Isolino saltam pensamentos que nenhum machado ousará cortar.

1 COMENTÁRIO

  1. Gostei muito de conhecer bem melhor, com este texto de José d´Encarnação, a personalidade do homem e do artista que foi Isolino Vaz.
    De facto é verdade: raramente nos perguntamos quem esteve por detrás (ou ajudou à formação) de uma figura conhecida e admirada. E no entanto todos os sinais do trabalho (artístico, neste caso) do formador/educador, apontam os pormenores que ele quis realçar.
    Aqueles pés enormes descalços, do homem sentado de mãos nos joelhos, caracterizam a preocupação dos neorrealistas com os problemas sociais e marcam um tempo determinado. A população vivia dessa forma: falta de trabalho, pés descalços, horizontes indefinidos.
    Outra passagem muito interessante deste texto é o relato de Álvaro Siza de uma lição ao ar livre, na praia de Leça. Sem fazer nada que dissesse respeito ao desenho…só correr contra o vento até perder o fôlego?
    Como diz Eduardo Lourenço logo no prólogo do seu SENTIDO E FORMA DA POESIA NEO-REALISTA, “A primeira virtude das coisas é a de existir”.
    Talvez Isolino Vaz quisesse que os seus alunos testassem os seus limites nessa virtude da existência.
    Um belo texto. Há artistas IMENSOS que merecem ser lembrados a todo o momento.

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