“Cunhas que salvam crianças não fazem mal a ninguém”, diz o prelado. E a pergunta fica no ar: e as outras todas que ficaram em lista de espera por não terem dinheiro nem as “amizades certas”, que de certeza podem correr perigo (se não correram já!), isso não faz mal?
Onde está o “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”? Que desígnios (pouco cristãos) guiaram a sucessão de acontecimentos que levaram a este lamentável episódio? Atenção: não está em causa o direito das crianças a terem tratamento médico e apoio, porque como é óbvio, salvar vidas é um objectivo nobre. Mas a que custo? E a troco de quê, para quem? O que têm de especial estas gémeas em relação às outras crianças (que também são filhas de Deus) para passarem à frente num tratamento dos mais caros do mundo, que os pais poderiam perfeitamente pagar? E o que leva o senhor bispo a defender a atitude pouco cristã do Chefe de Estado? Está o senhor bispo esquecido dos muitos casos de favoritismo dos ricos e “com apelido sonante”, transversais a muitos sectores da sociedade e que afectam negativamente mais pessoas que se pensa ou que se quer fazer crer?
As Sagradas Escrituras têm passagens como esta: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar pela porta do Reino de Deus” (Mateus, 19:24). Depende de quem o rico conheça e que tipo de favores está disposto a fazer, pelos vistos.
Afinal, não faz mal a ninguém facilitar determinadas situações mesmo que outros sejam no fim do dia prejudicados. Até porque, no fundo, a Igreja Católica tem pessoas reais, mortais e imperfeitas, que cometem pecados. Isso todos sabemos, e um certo Jesus Cristo melhor que ninguém.
O episódio do favoritismo dado às gémeas brasileiras é apenas mais um de muitos exemplos em como ainda persiste, hoje e sempre, um certo elitismo e favoritismo dentro das comunidades, que pode (em graus distintos, dependendo da situação) prejudicar bastantes pessoas a longo prazo, a favor das “pessoas certas”.
Pena é que o senhor bispo se tenha esquecido que todos somos iguais aos olhos de Deus, para quem (espero) não seja alheio o sofrimento das crianças que ficaram para trás neste lamentável episódio de cunhas. Pena é que os dignos prelados não saiam das suas vidas bem estabelecidas e olhem para a verdadeira comunidade cristã, que luta e sofre a cada hora, revendo-se no Nazareno. Lamentável, de facto, que os sistemáticos episódios de nepotismo que salpicam a Igreja ao longo da sua história não tenham levado a uma séria reflexão e às necessárias mudanças. Porque, como todos sabemos, esse hermetismo é que afasta as pessoas da Igreja e agrava os problemas. A cruz a que nos condenam a todos é o resultado desses jogos de bastidores, e a ofensa feita ao Messias é a injustiça. Devo lembrar que cunhas & compadrios são sim um pecado. A corrupção é pecado grave e é para ser combatida.
Tenha vergonha, senhor bispo. E Feliz Natal a todos.