Primeiro, porque boa parte dessas ‘coisas’ nem dos Mouros eram, mas da época pré-histórica ou romana; segundo, porque, em rigor, «mouro» é, literalmente, a pessoa natural da Mauritânia e nem mesmo os castelos de como o de Gondar ou o de Paderne os poderemos chamar de «mouros» e se prefere a designação, mais genérica, de «árabe».
Também o vocábulo «árabe» carece de explicação, porque, na linguagem corrente, não significa obrigatoriamente apenas quem veio da Arábia mas todos os grupos que perfilham da doutrina de Maomé.
Por esse motivo se fala de «civilização árabe», entendendo a expressão como indicativo desses povos do Próximo e Médio Oriente que entraram na Península Ibérica, após a batalha de Guadalete de 711; e se prefere, em contexto cultural, mormente religioso, a designação «islâmicos».
Quando, em pequenos, estudámos a História de Portugal, louvava-se a Reconquista Cristã: a batalha de Ourique «contra 5 reis mouros», a conquista de Lisboa com a ajuda dos Cruzados; mas não se esqueciam os benefícios que os Árabes nos haviam legado:
– a numeração, muito diferente da romana e já com a introdução do zero;
– as grandes inovações no domínio da rega através da cegonha ou picota e da nora;
– e, no aspecto da arquitectura, olhava-se para as chaminés rendilhadas e para as açoteias, esses terraços no cimo das casas algarvias para melhor aproveitamento da água proveniente das escassas chuvas.
A água assim acareada ia amiúde para cisternas que, embora o seu uso já viesse do tempo dos Romanos, foi com os Árabes que se generalizou no Algarve.
E, claro, salientava-se também que muitas palavras portuguesas começadas por al- (o artigo definido o, em árabe) eram de origem árabe. Temos, de facto, dos Árabes, no domínio linguístico, um legado riquíssimo, quer no que concerne aos topónimos (Aljezur, Alvide, Alcoitão…), quer, de modo especial, no que se prende com profissões (v. g., alfaiate, almocreve), frutos (ameixa, almecoque, alcagoita, azeitona, amêndoa…) e objectos concretos de uso comum: almeixar, alforje, aldraba, albarda…
Mas não se ia mais além. Do ponto de vista literário, por exemplo, pouco se ousara adiantar no estudo dos escritores de que se tinha notícia se haverem notabilizado no território hoje nacional. Do ponto de vista arqueológico, parece que existia algum pejo em encarar a possibilidade da existência de vestígios concretos da ocupação islâmica, até porque se partia do princípio de que tudo desaparecera com a Reconquista, o que viria a verificar-se não ser verdade. Por outro lado, os Mouros eram os «infiéis» contra os quais os Cristãos haviam lutado e o melhor era esquecê-los – assim o ditava o Regime.
Após o 25 de Abril de 1974, a situação alterou-se por completo, tanto no âmbito da Literatura como da Arqueologia. Começaram a surgir, nas universidades, cadeiras de Estudos Árabes; identificaram-se povoados árabes; o estudo da cerâmica árabe ganhou novo impulso… E o entusiasmo foi ao ponto de – se, até aí, a moda era dar a revistas de História o nome de cidades romanas (Conimbriga, Olisipo, Brigantia, Bracara Augusta…) – se optar, para as novas publicações, por palavras etimologicamente árabes: Xelb, em Silves, revista que começou a ser publicada em 1988 e que no primeiro número tratou das cerâmicas muçulmanas do castelo de Silves; Ibn Maruan, de Marvão, em 1991; Al-madan, em Almada (1983); al-‘ulyà, em Loulé (1992); Al-Rihana, em Aljezur (2005); Alacant, em Moura (2021).
O Campo Arqueológico de Mértola, criado, em 1978, por iniciativa de uma equipa liderada por Cláudio Torres, adoptou como logótipo a figura de um prato árabe e escolheu como principal programa da acção o estudo dos vestígios da civilização islâmica. Foi da iniciativa de dois dos seus mentores (Cláudio Torres e Santiago Macias) a coordenação da exposição, em 1998, no Museu Nacional de Arqueologia, intitulada «Portugal Islâmico – Os Últimos Sinais do Mediterrâneo», dotada de mui significativo catálogo com o mesmo título.
Helena Catarino, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, dedicou a essa temática a maior parte da sua investigação e traçou, na revista O Arqueólogo Português (nº 13/15, 1995/1997, p. 457-484), mui sintomática perspectiva do entusiasmado interesse que se registou pelos estudos islâmicos.
A leitura, publicada por Carmen Barceló, professora da Universidade de Valência, em 2013 (revista Conimbriga 52 p. 165-194), da inscrição árabe achada em Lisboa e que dá conta das obras levadas a efeito no castelo árabe da cidade, no ano de 985, constituiu também um ponto alto na investigação em curso, inclusive porque se estudara a inscrição funerária romana que fora gravada na parte superior da lápide mas inda se não lograra interpretar o texto árabe que, aproveitando o suporte, ali fora gravado.
Dir-se-ia haver aqui uma atitude sintomática a sublinhar: vendo uma inscrição romana, o árabe não hesitou em ‘casar’ com ela um texto árabe. Presságio duma aculturação, duma coexistência pacífica, que, dois milénios passados, ainda se almeja. Sem grandes esperanças, porém.
De: Antão Vinagre
Enviada: 2 de dezembro de 2023 21:38
Gostei muito do teu texto, pela sua clareza e oportunidade. Infelizmente , dois “milénios passados”, não existe “coexistência pacífica”.
O mais significativo deste importante texto, está aqui mesmo nos dois últimos parágrafos a ecoar-nos na cabeça.
Houve uma cultura rica com a designação genérica de Árabe, que já trazia consigo contributos de povos do Norte de África islamizados… Iam aderindo à mensagem antes de entrarem na Península, e presume-se que traziam vontade de produzir, aprender e partilhar.
Tal como demonstra o aproveitamento da lápide romana encontrada em Lisboa (por certo porque a gravação não estaria em perfeitas condições) também outras estruturas eram mantidas para economia de meios, livros traduzidos.
José d´Encarnação destaca assim as características essenciais dessa cultura que nunca serviu de tampão à passagem de fluxos migratórios, ou culturais, mas de ponte de entendimento e partilha de descobertas, como os números, já com a invenção do zero, com origem na Índia, além de obras de filósofos, engenheiros, poetas hoje conhecidos.
Há historiadores que fazem supor que na Península os autóctones, mais os romanos e os árabes, acabaram por conviver pacificamente respeitando apenas os seus cultos específicos.
A chamada Reconquista apagou o que convinha, mas omitiu verdades essenciais.
Não admira que, perante o caos em que vivemos há décadas e a tendência para destruir, os estudos árabes tenham surgido, descobrindo os investigadores a rica herança cultural que nos deixaram.
Grata por este momento, que lembra tantos outros.