Cartas para a Liberdade

O título é propositadamente ambíguo. Dizer que este número 76 da Egoísta, revista editada pela Estoril-Sol (III), comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril contém ‘cartas para a Liberdade’ que significa, afinal?

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2003

São, pelo menos, duas as leituras possíveis:

– cartas endereçadas a essa tão bem quista entidade, a suplicar-lhe que se mantenha connosco, contra tudo e contra todos, pois que muito nos custou alcançá-la;

– ou mensagens a quantos pele Liberdade anseiam e por ela têm de continuar a lutar, diariamente, sem descanso.

Seja como for – e cada qual é livre (!) da escolha – dir-se-á que essas inesperadas 140 páginas, em papel rico, de mui cuidadas e criteriosamente seleccionadas ilustrações, encerram em si, esses dois aspectos simultaneamente: a algazarra da alegria pela conquista alcançada e, mais de mansinho mas também lancinante, o grito de alerta para que a conquista não venha a ser baralho de cartas ardilosamente espalhado…

Logo na capa temos, bem erecto, o cravo em relevo, que apetece acariciar, para que não murche. Cravo em fundo verde de esperança. Mas logo o editorial, da autoria do director, Mário Assis Ferreira, nos adverte que este meio século «em volúpia de liberdade» nos deixou «livres para tudo, até na escolha das nossas prisões».

E sublinha, logo a seguir: que essa, a Liberdade «que quotidianamente nos cerca não é, seguramente, a Liberdade almejada, a nascida na razão, merecida na responsabilidade, tutelada pela justiça, consagrada na separação de poderes». Não. A nossa «Liberdade», hoje, é muito outra; porque se «corrói nos escombros da ruptura dos valores, alimenta-se de intrigas, é devassada em escutas espúrias, controla-se em chips delatores, vigia-se em câmara dissimuladas, dissolve-se em fake news nas redes sociais, ilude-se em manipulações censórias, substitui-se à justiça em piras incendiárias e imolações na praça pública».

Estranho panorama este, de facto, 50 anos passados, de que Lídia Jorge, em páginas mais à frente, «Mensagem breve após jovens», após ressaltar que é bom os jovens sentirem «a maravilha que é voltar a poder escolher, poder contar, poder dizer, perder protestar, poder votar, poder viajar, poder entrar e sair do país, seja homem ou mulher, casado ou solteiro, rico ou pobre, de esquerda ou de direita», também acentua ao pedir-lhes:

«Não permitam que a riqueza de poucos, e a pobreza de tantos, faça regredir o nosso mundo ao tempo em que se tinha de morrer para se construir a partir da base uma sociedade livre e amá-la tanto que não se podia separar-lhe as sílabas».

Núria Serrote

E, por isso, nos encantam os rostos e as mensagens insertas logo no 1º texto, «New kids on the block» (sim, a revista é bilingue). Escreveu, por exemplo, Núria Serrote, de 25 anos (isto é, uma das pessoas que já bem nasceu em Liberdade…) que é bom «sair à rua, colocar aquela música eletrizante e apenas dançar, fluir, viver o agora, sem medos do amanhã».

foto de Alfredo Cunha nas instalações da PIDE/DGS em Lisboa

Surpreendemo-nos a cada página. Nunca imaginaríamos que Alfredo Cunha nos viesse, um dia, a mostrar, a sala de um palácio (dir-se-á), com adequados reposteiros, vistoso lustre de cristal pendente dum tecto cinzelado e mui elegante mobiliário a servir de poiso a metralhadoras G3 e kalashnikov… Delicia-nos a simplicidade com que Júlia Cunha, em ilustração, nos conta que «a liberdade rega-nos os pés e nas nossas mãos rebentam cravos e em cada cravo cresce uma revolução». Lindo!

Mas o alerta fica. Através da Arte e da Palavra.

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