Pessoalmente, nunca deu um tiro, claro. Mas no Chile, Vietname, Laos, Cambodja ou Angola, todos sabem bem quem foi o responsável político por inúmeros bombardeamentos sobre zonas urbanas e campos agrícolas, com todas as bombas e produtos químicos dos arsenais do Pentágono.
Em Angola nunca contaram os mortos e raramente se faziam prisioneiros. Mas a estimativa aponta para que, em 27 anos de guerra civil, tenham morrido 1 milhão de pessoas, num país que ficou arrasado. Quem viu o Kuito, por exemplo, viu tudo o que o mal pode representar.
Quando Kissinger ultrapassou a fasquia dos 100 anos de idade, uma série de artigos publicados online pelo The Guardian lembraram as pilhas imensas de cadáveres à conta das decisões de Kissinger. Ainda mal a guerra do Vietname tinha acabado (com uma derrota americana), Kissinger viria a envolver-se em Angola e foi o primeiro secretário de Estado dos EUA a visitar a África do Sul em três décadas, prestigiando o regime do apartheid na sequência do massacre do Soweto, em 1976, quando dezenas de estudantes e outros manifestantes foram abatidos a tiro pela polícia.
Nos anos 70 do século XX, a política externa dos EUA em África ficou marcada pela sobranceria racista típica dos líderes norte-americanos. Brancos que, na sua própria terra, mantinham políticas segregacionistas.
Na Ásia não foi melhor. Kissinger deu luz verde ao golpe que levou Suharto ao poder na Indonésia e autorizou a invasão de Timor-Leste, com as consequências que a História não esquece: milhões de mortos nas perseguições políticas na Indonésia e o genocídio do povo timorense durante a ocupação de Timor-leste.
Quando celebrou o seu 100º aniversário, em 27 de maio, os convidados compareceram vestidos a rigor para uma gala à porta fechada na Biblioteca Pública de Nova York, com a presença de pessoas como o secretário de Estado, Antony Blinken, e o diretor da CIA, William Burns.
Mesmo os políticos que não foram convidados para a festa, espalharam pelo mundo palavras de elogio ao diplomata e político. Palavras de circunstância, inspiradas por obscuros interesses pessoais ou políticos. Na verdade, o que sobrou das políticas implementadas por Kissinger é insensibilidade para com as pessoas mais indefesas do mundo.
Não podemos deixar de referir que Kissinger era judeu. E, como tal, apoiou sempre todas as políticas agressoras de Israel. O que hoje se passa na Palestina também tem a assinatura de Kissinger, quando mais não seja pelos precedentes de impunidade só possíveis com a anuência dos EUA. Israel nunca cumpriu com as resoluções das Nações Unidas, nunca deixou de ter uma política expansionista, tornou-se numa potência militar com capacidade nuclear.
Agora que morreu, devem estar a pensar em erguer uma estátua de Kissinger numa praça qualquer de Jerusalém.