HELENA

É por ela que tenho este nome e guardo a fotografia num quadro sobre a minha secretária. Nada de mais...só tempos paralelos em diálogo. Duas pessoas de família, uma por essa altura ainda criança, iam despedir-se dela quando partia para longe...Mais ninguém.

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Era um dia de Novembro embrulhado em nevoeiro, sinal de se abrir mais tarde em primícias luminosas. Mas à chegada a Lisboa o dia fechava-se mais e ela quase não distinguia as feições dos vultos que vagueavam pela gare. Sentia palpitar o coração das gentes, como o dela palpitava, imaginando ver a silhueta dele por detrás de um guindaste em movimento.

Escreveria mais tarde que dera graças por aquela gaze espessa. Sem ver rostos definidos, podia concentrar-se no sonho de um adeus esboçado no cais e na promessa de o rever um dia em qualquer lugar, se o “destino” assim quisesse. Será que o sonho se faria luz?

Por indícios da correspondência trocada apenas com a sobrinha e afilhada, minha mãe, sempre imaginava que isso tivesse acontecido, ao passar os dedos pelos contornos do rosto amável. Até o sorriso era de felicidade. E queria acreditar que se não partira para o  casamento, era para não ofender os pais e os irmãos, reunidos aos sábados na Quinta da Redonda.

Por um lado impediam o velho João de trabalhar tanto como nos outros dias. Depois, talvez o compensassem daquela ausência dolorosa: uma filha apaixonada por um padre, um padre apaixonado por uma belíssima jovem a quem fora dar a beijar a cruz certa Páscoa, e das mãos de quem recebia a oblação da família.

O dia santo da semana sabiam os filhos que ele guardava com muita devoção numa entidade superior e muita tristeza também. Afinal a entidade não impedira Helena de partir… Era o dia da mulher lhe afagar a cabeça sem conseguir articular mais do que uma frase batida:

— Diz-me, quem manda no coração?

— Uma desonra, mulher. Tão linda, tão requestada…o mais belo presente dos seis que me foste dando. Se ao menos pudéssemos conversar mais uma vez…

— Não te atormentes, João…manda sempre lembranças saudosas pela Maria Ana e diz que quando quisermos falar, é só combinar o dia e a hora.

E deixava-o sentado à porta, a fazer rabiscos com um pau no chão de saibro, reproduzindo um mapa que não conhecia. Depois seguia por detrás das vidraças os passos dele pelos carreiros da quinta, destinos escolhidos ao acaso, até chegar ao extremo sobranceiro ao rio, o oceano que Helena cruzara para a vida inteira.

Todas as reuniões importantes eram em casa da Titília. Mais desafogada, com muita gente para ajudar nas outras tarefas, podia ali parar o tempo “útil” para minudências de mulheres. Era a opinião do meu pai, que não queria deixar que certas matérias saíssem da esfera da famíla restrita.

Naquele final de Dezembro ia nascer uma criança, a primeira de um casal jovem. O médico tinha anunciado, com os seus modos bruscos, que o melhor seria marcar o lugar na maternidade para princípios de Janeiro. Se alguma coisa contecesse antes, recomendava a parteira…os seus quase cem quilos não permitiam deslocações apressadas. De João Semana pouco tinha, mas era um hábil obstetra.

A discussão recaía na importância do nome que ia ser dado ao nascituro. Não havia ecografias, nem resultavam adivinhações pelo aspecto do rosto e pelo formato do ventre, como já antes se vira com outras gravidezes da família.

A mãe dizia, imperiosa, que seria Helena se fosse menina e Ricardo se fosse rapaz. E pronto. Não cederia às piadas das tias e das irmãs “isso é nome de pessoa idosa”. Nem queria para madrinha nenhuma das primas que se ofereciam, algumas ali presentes, com vontade de imporem o seu nome. Estava escolhido, como a futura madrinha da criança, de quem era amiga e a quem tinha prometido…

Maria Laura ofendia-se. Prima quase da mesma idade, sonhara tanto amadrinhar aquela cria. E ameaçava, dedo indicador quase a roçar o nariz

–- Verás que ela vai escolher outro nome espampanante e tu não serás capaz de rejeitar…

Só Ana, avó da futura prenda, concordava com a beleza de Helena e de Ricardo. Sempre lembraria a irmã mais nova de cada vez que chamasse pela neta, ou encheria o coração a repetir o nome do irmão, felizmente vivo, presente e um encanto de pessoa.

O futuro pai acolhia menos bem a decisão obstinada. Para ele o nome da menina, porque tinha a certeza de ser uma menina, devia ser a junção do nome das duas avós: Ana Carolina, mas havia coisas mais importantes do que decidir um nome.

Nascia então a criança no princípio de Janeiro, à noite, a berrar desalmadamente até vencer o cansaço dos pais. O guarda do jardim Botânico passava por ali, a ver se o portão estava fechado, e jurava que os berros vindos do edifício em frente só podiam ser de macho.

Com quem se parece, perguntavam todos à volta do grão de gente, logo na tarde seguinte

— Com ela mesma, dizia em alta voz o pai, morto por ver os curiosos pelas costas para a colocar nos braços. Mas tanto lhe diziam as enfermeiras “segure-lhe a cabecinha…não a deixe pendurada pelos sovacos…deite-a ao longo do seu braço para endireitar o corpinho”, que ele aninhava o volume gelatinoso na cama ao lado da mãe e nunca mais lhe pegaria até ela andar pelo seu pé.

A tia Helena, lá longe, ia acompanhando o crescimento da pequena, a partida definitiva dos pais dela, em trocas de correspondência regulares. Primeiro com a sua afilhada, depois com aquela adolescente curiosa em saber se ela estava feliz. Numa das cartas mais longas, com duas páginas e meia, dizia que era ditosa quase desde que chegara. E numa frase encorpada, com pouca pontuação, mandava a prova disso mesmo.

— Poucos meses depois de chegar ele batia-me à porta, vinha ao meu encontro e eu não podia rejeitá-lo…O resto é da nossa conta. Só a ele me confesso. Nunca disse a ninguém que ia ao Seminário duas vezes por semana assistir a umas prédicas depois do horário de trabalho. Era ele o orador, dava lá aulas de Educação Moral.  Diz a toda a gente que estou bem e mando saudades. Não digas a ninguém a razão de estar melhor do que pensam.

Cresce e sê feliz conforme a tua vontade, Helena.

Partiria menos de um ano depois.

Não tenho as cartas. Até as que me foram endereçadas, acompanharam o corpo da minha avó, a irmã nascida antes dela.

Creio que tudo acaba por aqui, mas gosto de sonhar que se encontram à conversa a trocar segredos. Porque havia outros segredos que só caberiam num romance…Guardo alguns. Nunca revelei o nome dele. A quem importaria saber?

6 COMENTÁRIOS

  1. Crónica comovente ainda mais pelo que se adivinha e uma historia que devia causar vergonha ou desonra numa família de bem no século XIX.
    Gostei muito de ler e confesso que queria saber mais daquele encontro lá longe mas a cronista faz segredo talvez por existir família directa dos implicados ainda viva.
    Mais um belo texto de Helena Ventura Pereira que já não passava por aqui há muito tempo.

    • sim, esperemos que a próxima crónica não demore tanto. são sempre belíssimos textos, reveladores de uma personalidade surpreendente (para quem não conhece pessoalmente a autora)

  2. Leio e releio, maravilhada!

    Todas ou quase todas as famílias têm destas histórias, secretas e amorosas. Mas poucas têm a sorte de poder contar com uma Escritora como a Helena Ventura Pereira para as descrever. Sobrinha-neta da Helena da história, herdeira do seu nome e dos seus afectos, mais ainda da sua reserva de memória, é em brocado tecido de emoção e amor que envolve esta belíssima crónica que nos oferece. Obrigada, Helena.

  3. Li, reli…voltei a ler e fui-me quase sentindo parte desta crónica.
    A escrita da HELENA consegue dar-nos a mão e levar-nos com ela a percorrer esta história de família . Uma escrita fluida, rica, com requintes de pormenor descritivo, uma prosa só ao alcance dos melhores.
    HELENA um nome de que muito gosto e agora mais ainda.

  4. Agradeço a todos a generosidade e a simpatia. Ao director do site/jornal online, agradeço de forma especial, porque afinal não lhe falta por aqui a colaboração de notáveis cronistas sempre bem informados, com discurso exemplar a destacar o essencial da vida. Um abraço a cada um e oxalá nos vejamos com mais regularidade.

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