Não esperávamos.
Tu confiavas também.
Quando escreveste A Volta à Vida em Vinte Livros (Apenas Livros, 2023), suspiravas, consciente ou não, por um regresso à vida normal ou quase normal. Nós acreditámos. Teus olhos macerados por tantos meses de luta contra a morte voltaram a brilhar. Não havia muitos estudantes, no dia da apresentação, 25 de Fevereiro; havia, porém, muitos colegas e, embora de fala tolhida, Alice, tu lhes transmitiste quanto era bom ler, quão era bom pegar num livro e dele retirar lições de vida, para a vida.
Por essas páginas perpassa, sabes bem, mui querida Alice Marques, sabes bem que perpassa toda uma experiência de docente de corpo inteiro. A docente que não impinge soluções e prefere suscitar perguntas para que, na reflexão, se encontrem respostas.
O teu múnus de professora jamais enjeitou o enorme prazer da escrita. Aceitaste, por isso, duas profissões. Sei o que é, porque também eu as não enjeitei. A gente, além da palavra na sala d’aula, precisa da palavra escrita. Na folha de papel. Professora e jornalista de corpo inteiro. Para intervir localmente, na vida da comunidade em que te enraizaste, uma Marinha Grande de revolução em riste por uma existência melhor. Para intervir complementarmente na senda da instrução dos teus meninos e meninas.
Daí nasce o Ponto & Vírgula, de que foste a timoneira indefectível. Tive o honroso privilégio de, pela tua mão, ser nesse jornal do Agrupamento de Escolas Calazans Duarte (Marinha Grande Poente) jornalista convidado. Ponto & Virgula, que também foi acolhido no Jornal da Marinha Grande, constituiu sempre fautorimenso de comunidade. Fazias questão, por exemplo, em sugerir entrevistas a personalidades que haviam sido estudantes na Calazans e agora já sabiam, exemplarmente, subir na vida.
Guardo, Alice, dolorosamente, as mensagens que, nas derradeiras semanas, após estares já impossibilitada de escrever, mesmo só com um dedo que fosse, as crónicas com que deliciaste os leitores do Duas Linhas. Gostei deveras, sabes bem, que tivesses aceitado o desafio que o Carlos Narciso e eu te lançámos. Há crónicas tuas que importa reler uma, duas, três vezes ou mais. Aquela, nomeadamente, em que contas, à tua maneira, a faina dos moços miseravelmente pagos para distribuírem refeições. Quase ouvimos o acelerar das motocicletas, sentimos o peso dessas mochilas, sabemos que têm muita pressa, muita, cada encomenda tem seu valor. Migalha a migalha. «Trabalhos merdosos» lhes chamaste tu (crónica de 26 de Março deste ano), em feroz contraposição aos trabalhos de m… Vale a pena reler.
Percorremos contigo, Alice, livros e países. Estamos-te gratos por isso, desde o teu primeiro livro. Mulheres de Papel (Livros Horizonte, 2004), a tua dissertação de mestrado em Jornalismo, anátema forte já então.
Não hesitaste em viver a vida como ela se te apresentava. Nos longuíssimos meses da tua doença, contigo aprendemos a nunca desanimar, a manter a esperança, mesmo que nenhuma luz se vislumbrasse ao fundo desse longo e soturno e bem doloroso túnel. Lição de vida, Alicinês! E vais continuar connosco, Professora! Descansa em paz!
Alice Ferreira Marques nasceu a 12 de Outubro de 1954, na Cordinhã, aldeia do concelho de Cantanhede. Passou 34 anos da sua vida como docente de História na Escola Secundária Calazans Duarte, na Marinha Grande. Sofreu um AVC a 7 de Junho de 2019 e um outro pouco tempo depois. Tolhida de movimentos, jamais abdicou de viver até que os pulmões e o coração desfaleceram, a 31 de Outubro passado. O seu exemplo de tenacidade e de inabalável cidadania vai perdurar connosco!