“Em frente de Notre Dame…Se for pela Igreja de Saint-Julien-Le-Pauvre, logo dá com ela entre o Sena e o Boulevard Saint Germain.
Espere…Vá antes pela Rue de La Huchette e logo a encontrará no nº. 37 de La Bûcherie”.
Era esta sugestão que aproveitava. Fazia o Boulevard Saint Michel a toda a velocidade, movida pelo desejo do encontro. Tantas histórias coloridas me tinham contado sobre o espaço!
Quando avistava a caixilharia verde, os jornais manuscritos em ardósias gigantes rente às portadas, as caixas enormes de madeira no passeio com exemplares usados à venda, gostava logo dela, da livraria mais conhecida do mundo, ou quase…E os meus dedos sacudiam a poeira das páginas devassadas e continuavam.
Cá fora pessoas descansavam nos bancos de madeira com um livro na mão, lá dentro o espaço apertado, nem por isso muito cheio de gente, estava apinhado de livros. Nas estantes, claro, e em cima de mesas redondas, em maples velhos que se casavam bem com os tectos com vigas de madeira, no chão…Eram tantos que eu nem sabia como explorar.
Não ia à procura de nenhum em especial e se fosse, ter-me-ia perdido…Como diria Picasso, “eu não procuro…encontro”. Muitos encontros tive essa tarde de grande avidez e pouco dinheiro!
As escadas…outro patamar onde descansava o piano e aquela espécie de cama onde alguém se instalava com um livro. E eu também, quando o jovem de cabelos compridos penteados em trança começava a tocar Sonho de Amor, de Franz Lizst. Eu…não sei se lia, se ia atrás dos passos de todos os escritores que por lá tinham passado, se dos acordes de Lizst como se fossem espirais de fumo de um cigarro.
Diziam-me que os recantos serviam de acomodação temporária a quem lá quisesse dormir. Escritores ou candidatos ao estatuto, que conseguissem provar mostrando credenciais e dispostos a dar umas horas de trabalho arrumando livros, podiam cumprir o sonho de dormir na Shakespeare and Company…
Chegava a pensar em ficar por lá. A tentação era maior do que as ameaças do pó…Se o meu tempo em Paris não fosse tão limitado e eu vestisse a pele de aventureira, era capaz de ter cumprido essa vontade que ainda hoje me interroga com sisudez. Mas o estado da única casa-de-banho, que nem um chuveiro tinha, também não jogava a favor…
Hoje sinto que foi erro. Quantos sonhadores não teriam afagado aqueles pequenos nichos, entre o papel novo e o velho, impressos com o vigor criativo de autores famosos, ou não…Quantas partículas de pó, que dançavam pausadamente entre corpos em movimento, não teriam inalado como um bálsamo de mofo…
Cá fora ainda me sentava num banco com uma edição de Lettres D´Égipte de 1963, de Teilhard de Chardin. Não lia, não. De olhos semicerrados fixava a Notre Dame, ainda inteira do outro lado do rio, para inscrever melhor na memória as emoções do fascínio que me tomava, naquela tarde, o espaço que tanta gente célebre pisou .
Se lá voltar, melhor,quando lá voltar, hei-de dedicar-lhe um dia inteiro. E depois hei-de degustar um macaron colorido com os olhos na catedral enegrecida, depois de mais um atentado insano ao património religioso edificado, que aguentou séculos.
Os homens estão a tornar-se numa espécie estranhamente rara, que já nem sabe auscultar as oscilações da História e os sentimentos dos seus antecessores, mas o livro físico continua a mesma entidade silenciosa e dialogante, receptiva aos afagos de qualquer estranho.
Comovi-me com este texto brilhante e envolvente de um dos espaços icónicos de Paris.
Sentei-me no mesmo banco e senti a mesma vontade de lá dormir.
Se um dia regressar farei como a Helena e sentirei toda a magia que aqui deixou.
Muito muito grata por este ” bocadinho” de sonho.
Quem melhor do que a Helena com a sua sensibilidade para nos levar nesta viage.
Se lágrima voltar, ou melhor, quando lá voltar, não desperdice a oportunidade: faça, nem que seja uma pequena sesta, recostada numa pilha de alfarrábios… Quanto à casa-de-banho, um dia não são dias…
Fora de brincadeira, parabéns, Helena, por mais uma belíssima crónica! Deixou-me com água na boca. Também por ali deambulei, um dia, mas não vestia ainda a camisola acertada…
Maravilhoso artigo que nos faz viajar e, num tempo conturbado, nos centra na grandeza de ser humano. Obrigado
Shakespeare & Co. Que delícia! Que bem Helena Ventura Pereira descreve a emoção que também eu senti a percorrer esses espaços, mais a Maspero e a Gibert Jaune, já só memórias hoje em dia. Em nenhum outro sítio como em Paris – acho eu – se vive assim os alfarrabistas. E os ‘bouquinistes’ das margens do Sena. E as belíssimas bibliotecas, como a de Sainte Geneviève, por exemplo, ali tão perto também… E digo ‘viver’, porque é isso que sinto, que ali se vive algo e de algum modo que em nenhum outro sítio existe. “Eu não sei se lia, se ia atrás dos passos de todos os escritores que por lá tinham passado…”. É isto mesmo, que eu não sabia dizer, é este modo de se estar e se viver aquele espaço. É assim, como tão magistralmente o diz. Obrigada.
Maravilhoso texto que nos faz sonhar.
Lágrima? Só se for de emoção…
Queria dizer ‘Se lá voltar’
Os meus agradecimentos a todos por estas palavras generosas, com doses de emoção, humor e empatia.
Talvez possamos fazer uma pequena excursão, como já sugeri. Por enquanto ainda existe em Paris tudo o que faz sonhar.