«Aberta aos pobres». Estranha, a inscrição em latim que jaz, solitária, no corredor do claustro do Fórum Cultural de Almodôvar: APERTAM PAVPERIBVS. Que se esconderá, afinal, por detrás de tão singular letreiro?
Chama a atenção. Foi, decerto, verga de porta. De grauvaque local, tem 158 cm de comprimento, 32 de largura e 22 de espessura. O campo epigráfico – de 124 cm de comprimento e 21 de largura – foi aberto na superfície grauváquica, alisado, delimitado superiormente por ranhura que o separa da superfície do bloco deixada por alisar, o que denota se ter destinado esta parte a ficar escondida sob o reboco, deixando apenas o letreiro à vista. Não existe a correspondente ranhura inferior, por coincidir com a superfície inferior do lintel, que ficava à vista sobre a porta.
Enquadra o letreiro um rectângulo limitado, também ele, por ranhura singela e que deixa espaço de cada lado para a gravação da data : I7 e II, respectivamente.
O letreiro não oferece dúvida de leitura, apesar dos múltiplos nexos a que se recorreu para melhor aproveitamento do espaço disponível: AP, AMP e AVP são os nexos aqui presentes, chamando-se ‘nexo’ à utilização comum, por parte de duas ou mais letras, dos traços respectivos. Assim, a 2ª perna do A serviu de haste para o P; o A ficou metido na 1ª metade do M e, deste, o P aproveitou o último traço, assim como, de seguida, as letras AVP lograram ‘organizar-se’ com os traços que lhes serviam.
Assim lê-se:
I7 | APERTAM PAVPERIBVS | II
Data-se, pois, de 1711 e significa: «Aberta aos pobres». Também poderia traduzir-se «para os pobres». Na verdade, ambas as preposições – a e para – são aceitáveis, embora possam dar à frase duas conotações diferentes: a casa ‘foi aberta para os pobres’ ou a casa ‘está aberta aos pobres’. O uso do latim permite que ambas as interpretações sejam válidas e foi porventura essa ambiguidade que se procurou manter, ambiguidade acrescida, como está, pelo uso do acusativo apertam, a pressupor, para esse complemento directo, o subentendimento de um verbo transitivo.
Não vamos, porém, massacrar os nossos leitores com tais minudências gramaticais, porque – quer tenha sido aberta expressamente para os pobres ou manifeste apenas a intenção de dar guarida a quantos como tal se apresentassem – o certo é que o letreiro anunciava que os pobres eram bem-vindos. Casa paroquial seria, por estar escrita em latim, ou parte de convento de ordens mendicantes que a essa obra de caridade se dedicassem?
De acordo com os dados que lográmos apurar, a pedra estava inscrita na verga da porta de uma casa que foi demolida na aldeia do Rosário, freguesia do mesmo nome e concelho de Almodôvar, situada na Rua das Eirinhas,.
Segundo nos disseram Jaime Murta, neto de Manuel Joaquim, antigo proprietário, e Francisco António Deodato, pai da actual proprietária, Elisabete Deodato, foi-lhes transmitido pelos mais velhos que a casa terá sido residência de padres, em época recuada. Lembram-se de haver na casa “pilheiras”, ou seja, cantareiras abertas nas paredes, do tipo de altares, e pias, que se supõe reportarem à vivência dos antigos habitantes.
Em 1999, os responsáveis pelos serviços camarários ligados à Cultura e ao Património, houveram por bem recolher a inscrição e outro fragmento pétreo com uma cruz, tipo flor de lis em relevo, mui provavelmente pertencente ao mesmo edificado e que estavam “abandonados” no terreno. Ciente do seu valor histórico, o Sr. Francisco António Deodato, que tinha adquirido o imóvel, não hesitou em os ceder para a Câmara os ter em bom recato.
A pedra foi, na altura, depositada num armazém e daí trazida para o claustro do Convento de Nossa Senhora da Conceição (Fórum Cultural de Almodôvar), onde se encontra, a desafiar os investigadores locais para dela obterem mais adequado enquadramento histórico.
Datada dos primórdios do século XVIII, porventura testemunhos idênticos haverá dessa época. Certo é, porém, que manifesta uma preocupação assistencial digna de apreço. Em 1711, estava-se no reinado de D. João V, «O Magnânimo».
O letreiro faz-nos lembrar de imediato a designação Casa dos Pobres, por que virão a ser conhecidas institucionais criadas já nos primórdios do século XX.
Estamos a recordar uma das mais conhecidas e activas, a Casa dos Pobres de Coimbra. Fundada em 1935, no Pátio da Inquisição, mudou-se provisoriamente para a Praça do Comércio em 2001, donde saiu, em 2007, para um novo edifício em São Martinho do Bispo.
Também na Pampilhosa, foi criada, em 1938, uma Comissão de Assistência aos Pobres da Freguesia da Pampilhosa para – lê-se em documentação da altura – «acabar, dentro do possível, com esta miséria, facultando aos pobres desta freguesia o pão que até agora têm andado esmolando pelas portas.» Esta comissão iniciou o seu trabalho a 1 de Janeiro de 1939, ano em que construiu o edifício da “Casa dos Pobres”, que se manteve com essa finalidade enquanto preciso foi.
Lemos que, a 23 de Abril de 1932, foram aprovados pelo Governo Civil do Porto os primeiros estatutos da “Casa dos Pobres” (Albergues de Sant’Ana), em Matosinhos. Nessa mesma altura se criou a Associação de Assistência aos Pobres do Concelho de Matosinhos, com o objectivo de contribuir para a «extinção da mendicidade».
Houve também em Guimarães a Casa dos Pobres (Lar de Sto. António), criada em 1934, que a si anexou a chamada «Cozinha Económica» para fornecer alimentação, a preços módicos, “às classes proletárias”.
Sabemos que, em Cascais, uma das figuras relevantes de médico, o Dr. António Pereira Coutinho, falecido a 13 de Fevereiro de 1964, foi grande amigo dos pobres e bons serviços lhes prestou na Casa dos Pobres. Esta, que estava dotada de capela própria, como se documenta num postal ilustrado de 1950, e se encontrava precariamente instalada no edifício duma antiga fábrica de conservas, na Av. de Sintra, viria a ser dotada de novas instalações, cuja primeira pedra se lançou a 23 de Setembro de 1964, passando a chamar-se Casa de Repouso de Cascais.
Merecerá, pois, investigação – e porventura já mereceu – a criação destas Casas dos Pobres, de que esta, de 1711, terá sido, em Almodôvar, 200 anos antes, a pioneira! Na verdade, os poucos exemplos aduzidos apontam só para os anos 30 do século XX essa atenção generalizada.
Artigo em co-autoria com Rui Cortes
De: Leontina Ventura
6 de setembro de 2023 19:08
Como uma pedra com uma importantíssima mensagem (até agora desconhecidas de muitíssimos) ganha relevo com o texto e as excelentes imagens com que o fizeste acompanhar. Os tempos passados, e os de hoje como nunca, oferecem, por si próprios, contexto e justificação para qualquer obra como essa de que ela é memória.
Efectivamente a Casa dos Pobres de Coimbra é uma marca de grande relevo, à qual o saudoso Senhor Aníbal de Almeida se entregou e à sua vida durante muitos e longos anos, acção que, desde a sua morte, tem dado continuidade a Dr.ª Luísa Carvalho, esposa do Dr. António José Luzio Vaz.
E que fique a provocação para os especialistas da temática e do período cronológico e que possam em investigações, porventura já feitas, ou em investigações a serem feitas, trazer mais luz a essa pedra (que felizmente foi preservada!!!).
Escreveu-me o Doutor Luís Reis Torgal: é sócio, desde que está em Coimbra, da Casa dos Pobres – e tem as quotas em dia!