Sentada no banco de pedra, já no local da fantasia, semicerrrava os olhos e deixava-me voar sobre a mancha verde da vegetação, tão rente ao céu completamente azul, que escutava a voz dos anjos.
Está bem, seriam pessoas reais, o chilreado dos pássaros, o barulho difuso dos automóveis misturados com o meu encantamento. Não sei para que temos a dita inteligência superior, se não sabemos traduzir com acerto as emoções.
Mas enquadrando a importância daquele banco de pedra…
A minha aversão à História Universal no liceu, fazia-me cair em tentação, a mim que até explicava às meninas dos últimos anos, a pedido da professora de Religião e Moral, os filmes sobre o Velho Testamento. Quero dizer, sabia dos castigos divinos – e não divinos também – a quem incorresse em penas graves. E era uma ofensa gravíssima ao Catecismo, faltar a uma aula para estudar para o teste de outra disciplina, mas era o que acontecia.
As três amigas mais chegadas, que desciam comigo do trólei na paragem anterior, uma simulação de exercício matinal, estavam tão pouco iluminadas sobre a matéria quanto eu: zero.. A mais velha e a mais franzina tinha jeito para motivar as indecisas com o dom da palavra. Nem sei se fez carreira na política como grande líder de pequenas causas…
Em reunião pelo caminho, inteirada do nosso grau de ignorância igual ao dela, sugeria sacrificarmos a aula de Matemática para estudar para o teste da hora seguinte. O local que indicava era-nos proibido: o Penedo da Saudade. A razão? Era por lá que vagueavam os universitários “preguiçosos, fanfarrões, namoradeiros” sozinhos pela manhã, ou acompanhados pelas raparigas “mal comportadas” quando a tarde começava a declinar…
Todo este palavreado era da minha costureira de meia-idade, que engravidara de um estudante de Medicina aos 15 anos. Sabia muito da vida, dizia ela, e não eram as explicações mal-amanhadas que a convenciam sobre a prenhez da menina da senhora tal… E abria mais o olho com o dedo indicador…
A razão dizia-me para não subir a ladeira, que teríamos de voltar a descer. Que tempo nos restaria para anular a ignorância? A emoção implorava que tentasse, ao menos daquela vez, abrir a porta do pecado, tão bem matraqueado que nem nos deixava dormir. Olhei para um rapaz…será que pequei?
De uma falta e de um castigo exemplares dos pais, não ia conseguir escapar. O liceu era tipo sede da Gestapo e o relatório do comportamento subversivo estaria em casa em dois dias, com “sorte” no dia seguinte, depois de um telefonema.
Quanta emoção ao descer o primeiro lanço de escadas que levavam à plataforma do Penedo da Saudade, separadas do segundo por um patamar! Era o patamar que me prendia, com o Recanto dos Poetas na parede frontal, exposto a quem descia. À luz do sol brilhavam as lápides emolduradas por ramos de hera, com excertos de poemas de autores conhecidos que eu já lia.
De repente inflamada pela veia poética, seguia as colegas até aos bancos de pedra. Arrancava uma folha de papel de um caderno a uso. Pedia uma esferográfica para não gastar a minha, destinada ao teste. Para o nada que sabia, a minha havia de sobrar, mas podia acontecer o milagre de ficar iluminada…
Uma colega conseguia uma caneta verde no fundo da sacola.. Roubando-lha da mão, inscrevia no papel, com a raiva do talento que me brotava da alma, duas quadras arrebatadoras, a última anunciando já o meu caminho…
Salve ò recanto dos poetas/Salve ò Penedo da Saudade/Os meus versos ficarão aqui gravados/Para sempre, para toda a eternidade? Depois galgava os degraus até ao patamar, espetava um raminho seco de hera na folha de papel e descia, confiante de ficar a salvo de semelhanças banais em tal adejar suave. A partir daquela hora seria residente na morada das grandes glórias.
As outras já desfolhavam páginas no banco ao lado. Eu planava sobre a verdura e as casas que ela escondia, como se descida do Olimpo para um passeio entre os mortais. Até que aquela voz masculina, cheia de requebros de declamador, pronunciava palavras que todo o Penedo e lugares vizinhos deviam ouvir: SAL-VE Ò RE-CAN-TO DOS-POE-TAS/SAL-VE Ò PE-NE-DO DA SAU-DA-DE...
Aquilo não me era estranho… No vôo de repente aturdido, ia dizendo para mim que já ouvira as mesmas palavras em algum lugar…mas onde? Quando se me fazia tamanha luz que derretia o par de asas, percebia na queda livre que as escrevera pelo meu punho. E apetecia-me morrer ali mesmo, numa cova larga e funda por mãos caridosas aberta. Ninguém abria a maldita cova. Ficava à mercê da zombaria de todos, até das minhas colegas, já de pé como se fossem ovacionar. Quem?
Rodava o corpo para olhar para trás. Três marmanjos de ar lavado, impecáveis na capa e batina, iam-se aproximando de nós. Eu sentada no banco de pedra, com a arma do crime na mão….O da minha esquerda, mais alto, a olhar-me com pesar. O engraçadinho do meio, com presunções de dizedor e a minha folha na mão, a esconder a desvergonha do riso sob um bigode bem farto. O da direita, mais magro, a exibir um sorriso de orelha a orelha e a dar uns guinchos de macaco que agradavam às minhas colegas, diziam elas depois.
Eu ainda abria a boca duas vezes, mas fechava-a, como peixe fora de água, sem alento para protestar. O meu legado para a posteridade arrancado sem dó em segundos! O mais alto dava cotoveladas ao do meio e sem tirar os olhos dos meus, onde as lágrimas bailavam, dizia-lhe em voz baixa que me deixasse em paz…Mas o outro massacrava:
“Quem escreveu estas quadras magníficas, dignas de uma Antologia?” E fixava, com ar de gozo a esferográfica verde. Depois já perguntava com ar adocicado…”Quem escreveu” e logo num tom quase inaudível…”Quem..” Por fim era levado pelos outros, que uns minutos mais e ainda me pegavam ao colo.
Olhávamos os relógios. A Eternidade acabara…Depois era correr ladeira abaixo num rali desenfreado e chegar ao teste de História com a cabeça vazia.
Seria um medíocre, um mau, só porque não havia péssimo.
Péssimos eram os dias seguintes a pé, com medo de encontrar os tais num transporte e sofrer outro vexame.
Não me lembro de emagrecer tanto em menos de uma semana. Lembro sim dos vários castigos, mas esses não confesso a ninguém…por enquanto. E lembro que foi a partir de então que comecei a preferir morenos de olhos verdes como o meu Salvador, que por acaso se chamava António Pedro…
Uma história memorável de um poema que deveria estar inscrito para a eternidade no Penedo da Saudade!
Suave e terna evocação esta, do Penedo da Saudade, o mítico recanto da Coimbra dos estudantes. Se foi certeira a inspiração? Claro que foi! Ali respira-se Poesia, mormente a lírica e depressa se esquecem os testes escolares e as suas consequências para o pensamento correr para as alturas, onde é mais delicioso o viver. Assim fez Helena, num ápice, num vislumbre no que viria a ser anos mais tarde o seu estro poético. Que a presunçosa altivez masculina tivesse querido nublar o momento – deixá-lo! Ele, afinal, perdurou até hoje, algumas décadas passadas. E mantém a doçura d’outrora!
Que delícia, a descrição deste ilícito juvenil! E que pouca sorte este arroubo ter tido tal acolhimento..
Felizmente que a nossa Poeta não se deixou vencer por esta primeira crítica, tão desinformada e insensível. Mas também aqui se verificou, afinal, o aforismo de que “há males que vêm por bem” e a Maria Helena ganhou, afinal, um.amigo naquele seu salvador.
Intrigante mesmo, para mim, é a aversão confessada pela História Universal. Pois que, quanto à de Portugal, se tem revelado uma investigadora dedicadíssima, de grande rigor e elevada craveira, como o atestam os romances históricos da sua autoria… Mas enfim, eram ainda os verdes anos.