Uma estela com figura feminina
Encostada ao muro do adro, no lado direito da igreja paroquial de São Martinho das Chãs, junto de outras peças de granito retiradas, presumivelmente, do antigo templo, está uma laje de granito de grão médio que ostenta, esculpida, uma figura feminina estilizada. As suas dimensões são: 1,37 m de altura; 0,66 m de largura na parte superior; 0,57 m de largura na parte inferior; atinge 0,13 m de espessura (que é irregular).
A igreja, de fundação românica, é uma das mais antigas do concelho de Armamar e a paróquia de São Martinho das Chãs uma das primeiras da diocese de Lamego. Nas escadas de acesso ao adro há duas lápides sepulcrais, reutilizadas, com inscrições bastante delidas. Diz-se que o primitivo templo teria sido erguido no século VI, ou seja, ao tempo que por ali viviam Visigodos. Mais se informa que, no chamado “Couto de Lumiares”, que integrava as povoações de São Martinho, Gogim, Vila Nova e Santa Cruz, chegou a imperar, no século XIII, o influente rico-homem D. Abril Peres, bisneto de Egas Moniz!
Na página de São Martinho das Chãs na internet, afirma-se, pois, com inteira razão, que passear por essas paragens é como fazer «uma viagem no tempo», uma vez que «as ruas estreitas formam um aglomerado populacional compacto que remonta ao típico ordenamento medieval», chamando-se também a atenção para o antigo relógio de sol que existe na parede sul do vetusto templo. E, no que se refere à economia local, anota-se que «onde outrora se produziam muitos cereais, é hoje a maçã que domina a actividade agrícola, bem visível na paisagem marcada pelos pomares de macieiras».
Passou, porém, despercebida a laje figurada com que topámos e que perplexos nos deixou: de que época será? Desses remotos tempos visigóticos?
Quiçá!
Diríamos que uma auréola lhe envolve a cabeça, como se de santa se tratasse; os braços estão nos quadris, em jeito de quem vai ensaiar passo de dança, que os raios a partir da cintura, simulando saia pregueada, mais sugerem quem, de facto, se predispõe para um passo de dança do que posição de alerta perante insuspeitado inimigo. A mão direita passou para trás das costas; a esquerda, de longos dedos abertos, apoia-se sobre o abdómen. Foi rasgado um ténue sulco horizontal ao nível do pescoço.
Pedra tumular? Não nos parece, até porque essa hipótese deveria requerer alguns dizeres a explicar.
Afirmámos que a laje passara despercebida. Talvez não, porque, na entrada «Igreja paroquial de São Martinho das Chãs» do Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, se anota, na «Descrição Complementar»:
«Encostada ao muro da nave, do lado do Evangelho, sob o coro-alto, uma estela granítica com decoração raiada».
Poderá ser esta, que, tempos depois, alguém achou melhor pô-la… ao fresco!
Trata-se de uma arte rústica, uma figuração singular, que certamente vai interessar os especialistas das artes medievais e que, para já, deve suscitar nas autoridades locais a vontade de a preservar e de fomentar o seu enquadramento estético e cronológico.
Um marco de propriedade
De facto, nossas deambulações passam também por vinhedos, não para ajuizar da sazonal valia da safra, mas por sermos impenitentes curiosos. Por isso, nos chamou a atenção, a escassos metros da capela setecentista de Nossa Senhora da Conceição, um marco decorado, na Quinta de Vilarinho, a meia encosta, no extremo de uma vinha, junto a caminho de acentuado declive, na povoação de São Joaninho, freguesia de Vacalar, também do concelho de Armamar.
De granito de grão médio, mede 1 m de altura acima do solo; 0,47 m de largura; e atinge 0,23 m de espessura, sendo também de talhe tosco. Apresenta na parte superior um círculo vazado, de 0,26-0,30 m de diâmetro, com rosácea de oito raios em relevo. Sob ele, esculpido, um motivo em forma de elipse ou C invertido.
Ao contrário da estela anterior, que não mereceu atenção de maior, este foi classificado, por José Gonçalves Monteiro, na pág. 222 da sua obra, Armamar – Terra e Gente (Armamar, 1999), de «marco pombalino», sugerindo o autor, pela existência da rosácea («tudo indica», escreve Monteiro), o possível aproveitamento de uma «estela funerária (luso-romana?)».
Não é.
Primeiro, porque os marcos pombalinos são aparelhados e ostentam, habitualmente, a inscrição FEITORIA e respetivo ano de implantação. Readaptação de uma estela funerária romana também não será, por se apresentar com uma tipologia bem diversa da dessas estelas.
Aproveite-se o ensejo para assinalar que também na localização Gonçalves Monteiro se equivocou, porquanto o marco não se encontra, de facto, «a cerca de 80 metros da capela» de S. José, sita na Quinta de S. José do Barrilário.
Mais um desafio, por conseguinte, aos historiadores locais: que senhor tinha por distintivo das suas propriedades esse motivo geométrico? Outros haverá pelas redondezas? Na verdade, se, como pensamos, é marco de propriedade, decerto mais haverá que encontrar!
(artigo em co-autoria com José Carlos Santos)
Teve o Prof. Manuel Real a gentileza de aceitar o nosso repto, dando-nos a explicação do que as imagens representam:
«Estive a olhar para a laje com figura humana e parece-me tampa de sepultura. Mas é muito estranha. Apesar da rudeza da figuração, a posição das mãos é canónica, na representação de defuntos. Não consigo perceber a razão do risco transversal ao nível do pescoço. Terão pensado em cortar a pedra por aí? Em baixo, parece, mesmo, que cortaram a parte das pernas da imagem. Não consigo ter certeza se era homem ou mulher.
Se se conseguisse observar a outra face, poderíamos, por sorte, ainda encontrar algum elemento de encaixe. Mas também não é seguro que pertencesse a um sarcófago. Poderia ser simplesmente a tampa de uma sepultura rasa.
Quanto à outra peça, o dito marco divisório, é seguramente de uma Comenda da Ordem de Malta. Há anos, quando andava por Vouzela, vi vários semelhantes aqui e em S. Pedro do Sul. Um deles acaba de ser publicado pela Paula Pinto Costa, medievalista da FLUP e actual Presidente do Conselho Directivo. Digitalizei a página correspondente, para comparar. Parece quase da mesma mão…»
Trata-se do livro
Costa, Paula Pinto e Rosas, Lúcia, Da comenda de Ansemil à Quinta da Comenda. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2023.Acessível em
https://hdl.handle.net/10216/149255
e a imagem vem na p. 26 desse livro.
Mais uma achega do Doutor Manuel Real, que muito se agradece:
De: Manuel Real
Enviada: 8 de outubro de 2023 12:05
Quanto aos encaixes, nada aparece. O entalhe e a perfuração serão fruto de um reaproveitamento da peça, anterior ou posterior. Mas há um detalhe que poderá induzir a tratar-se de uma tampa de sarcófago. E nunca vi nada assim. Na suposição de ter havido um enterramento com a cobertura do féretro por cal (coisa estranha, para a qual não conheço paralelos), parece haver de ambos os lados uma bordadura sem a dita cal, o que poderia ser explicado pelo encosto da tampa com as paredes laterais de um sarcófago. Mas a arqueologia funerária não é a minha “praia”, pelo vou vendo coisas, mas sem a profundidade que exigiria uma resposta fundamentada à questão que aqui levanto.
De: Jorge de Alarcão
Enviada: 9 de outubro de 2023
Ainda a propósito da lápide: pela posição da figura, tem todo o aspecto de uma figura jacente e não de uma figura que se quisesse representar de pé.
A cabeça parece feminina. A parte inferior mais parece uma saia do que uma sotaina.
Bem-hajam pelas informações!
Melhores cumprimentos