Carlos Tomás: obituário para um gladiador

Vou começar por fazer uma declaração de interesses. O Carlos Tomás, jornalista, deu-me a oportunidade de trabalhar em jornalismo de investigação, abriu-me as portas da redação de O Crime e foi o meu mestre, camarada, amigo e conselheiro durante anos. Assim sendo, não esperes, tu que me lês, que este texto seja apenas um obituário asséptico despojado de sentimento.

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Conheci o Carlos em 2010, já ele era um nome feito no jornalismo, tendo integrado redações de títulos tão grandes como Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Focus, além de ter estado em outras publicações com percursos curtos como a TV Top. Um jornalista de mão-cheia, adepto fervoroso da verdade, opositor da manipulação, contestatário não só do sistema que governa a comunicação social, mas especialmente do conluio entre esta e o poder judicial, o Carlos era, como o classificou Paco Bandeira “o último gladiador do jornalismo”. Eu sou obrigado a concordar.

Pessoalmente duvido que tenha a capacidade para aguentar tanta pressão, de tantos lados ao mesmo tempo, durante tanto tempo. O Carlos fez como dizia Che Guevara: antes morrer de pé que viver de joelhos. Ele nunca se curvou. Por mais ameaças, campanhas, até reportagens na TV a denegri-lo e a atacar a sua família, o Carlos nunca cedeu.

O que nos levou a sentar na mesma mesa foi a investigação que mais o apaixonou, e que tanto contribuiu para que um punhado de hienas lhe destruísse a carreira, e ajudasse a destruir a vida e o espírito: O processo Casa Pia. Como repórter de investigação do jornal 24Horas, o Carlos esteve na liderança de tudo o que tinha a ver com o processo mais mediático de sempre em Portugal. Foi ele o primeiro a pôr as mãos no famoso Envelope 9. Foi ele quem começou a perceber que algo cheirava mal na investigação e que não poderia nunca existir uma rede de pedófilos.

Ele sabia que os relatos de jornalistas como Felícia Cabrita, Tânia Laranjo, Ana Leal e Alexandra Borges (que depois todos seguiram como carneirinhos), estavam inquinados. Restava saber porquê. E ele soube, expôs, denunciou e as hienas fizeram-no pagar por isso. E riram-se. Felícia Cabrita acusou-o, nos jornais, de pagar às vítimas da Casa Pia para reverterem o testemunho. 50 mil euros, dizia ela, que o Carlos Tomás lhes tinha prometido. Ela sabia que era mentira, mas tinha de manter viva a história que criara e que tanto tinha lesado pessoas que nada tinham a ver com os abusos a crianças: Carlos Cruz, Manuel Abrantes e Ferreira Diniz. As restantes hienas seguiram o faro necrófago da história e juntaram lenha à fogueira.

Anos mais tarde, Alexandra Borges até a família do Carlos usou como arma porque ele sabia que ela mentiu no caso das adoções da IURD.

O Carlos foi, na prática, banido de todas as redações de jornais nacionais. Foi cancelado por fazer o seu trabalho, ostracizado por acreditar que o jornalismo se quer independente e verdadeiro. Lutou contra gigantes e perdeu. Mas com ele perdemos todos.

O Carlos foi alvo de uma campanha concertada, nos bastidores da comunicação social portuguesa, para que o seu nome não mais pudesse ser parte integrante de uma redação “de referência”, como eles gostam de se apelidar. Antes, para se protegerem a eles e às suas narrativas, escolheram destruí-lo a ele.

A História encarregar-se-á de mostrar quem mentiu, participou nesta cabala e o que ganharam com isso. Pelo menos estas henas já todos sabem que são mentirosas e agem apenas no seu interesse. E se não sabem é porque são cegos ou burros.

O último cargo de relevo que o Carlos teve foi em 2012-2013, como Diretor do jornal O Crime, em declínio acentuado e a lutar com a falta de credibilidade que lhe foi imposta pelo inenarrável José Leite. O Crime estava nessa altura nas mãos do seu último editor, um advogado de pacotilha de seu nome Santo Oliveira. Um crápula mentiroso que queria um título jornalístico para se arvorar em importante. O Carlos era o diretor, mas não era ele que controlava a edição. Isso cabia a um amigo do patrão, um senhor que comenta muito na TV em programas da manhã. Especialista em justiça e crime, diz ele. Opina muito sobre tudo. Vocês sabem quem é. Eu não vou dizer porque ele tem a mania de processar toda a gente que lhe descobre a careca. E se ele tem amigos em sítios importantes…

Mas o Carlos não se calava. E dizia o que precisava ser dito. Até escrevia o que precisava ser escrito, como sempre. Foi dele a história sobre o Miguel Relvas, que a SIC alegou ser seu exclusivo e que deu um prémio Gazeta a um jornalista do Público, como se tivesse sido este a revelar o escândalo ao país. Não foi. Foi o Carlos Tomás. E foi injustamente posto de lado pelos colegas da restante comunicação social.

O mesmo Carlos Tomás que conta a história dos “brutos” da RTP ilibando Nuno Santos. O mesmo Carlos Tomás que revelou a venda do Pavilhão Atlântico ao genro de Cavaco. O mesmo Carlos Tomás que revelou que o juiz Rangel vendia sentenças e foi condenado por isso, apenas para ver a sua reportagem provada em tribunal mais tarde.

O Carlos era uma força imparável quando cheirava uma história. E foram tantas, que ele não largou e revelou. Após uma edição em que a manchete foi um antigo Primeiro Ministro que alegadamente espancava a mulher, o patrão de O Crime decidiu prescindir do Carlos. A razão nunca a revelou, mas nós suspeitámos. E não lhe pagou, tal como não me pagou a mim e a outros elementos da redação que tinham sido trazidos pelas mãos do Carlos Tomás.

Uma semana depois O Crime era tomado de assalto por pessoas ligadas ao CM e à Cofina, com o propósito de acabar com o resto e limpar o trabalho que nós, afincada e pesadamente, tínhamos conseguido fazer. Atiraram o título para o esquecimento e deram a machadada final num jornal histórico. Doeu-nos muito, mas ao Carlos doeu muito mais. Aliás, doeu-lhe sempre. Sem que lhe dessem a mão noutros lados, mais tarde editámos um jornal local, em Massamá e Monte Abraão. Foi um exercício de paixão, onde o Carlos continuou a fazer um trabalho exímio em nome do jornalismo de excelência, mesmo que num título pequeno. Foi ele que deu a notícia do condutor da Vimeca que ameaçou uma passageira com uma arma de fogo.

Os últimos anos não foram fáceis para o Carlos. Mas houve quem não o tenha esquecido. O último trabalho publicado foi no Tal & Qual, há uns meses. No prelo estavam dois livros, para os quais me tinha convidado a colaborar. O Carlos, que já tinha editado títulos como “Matar à Portuguesa” convidou-me para escrever dois livros com ele. Um sobre o papel das mulheres na religião, outro sobre a sua eterna demanda do ‘Santo Graal’: o processo Casa Pia.

Morreu o gladiador que tanto lutou pela justiça para os outros, sem ver justiça para si próprio. E as hienas continuam a rir, enquanto comem os restos putrefactos dos outros. Estejas onde estiveres, companheiro, espero que encontres a paz que não tinhas.

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