As chamas nos dedos da Ana

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colagem fotográfica

Cássia remete-me para a Santa, a das causas impossíveis, ou para furacão brasileiro, a Eller, de quem sou devota. Um nome que remete para alguém de quem gostamos é meio caminho andado para querermos descobrir algo. Repito, silabando: Cá ssi a. Fico a pensar na mistura, entre a doçura do silabado e a junção de todas, dando-lhe força. Descubro, ainda, que é casca aromática semelhante à canela. Casca dura, canela aromática e talvez encontre aqui Ana Cássia Rebelo, doravante Ana Cássia, tour court, que eu intimo-me muito rapidamente dos autores que me ficam próximos.

Estamos em 2023 e, pelas minhas pesquisas internéticas, continuam a ser só dois livros, o que é uma pena, ou não, que muitas vezes mais vale escrever pouco e em bom do que passar a vida a encher chouriços, morrendo literariamente aos pedaços, ainda que não me pareça ser esse o caso. Propus-me, há umas semanas, avançar para a Ana Cássia e alambazei-me com os dois na biblioteca municipal de Marvila- um bem-haja à rede pública de bibliotecas da capital, que amo, só um aparte – e passei a conhece-la quase 20 anos depois, ainda que seja frenética leitora e gosto sempre de uma instável-neurótica-ó-coiso. Atentai que isto é elogioso. A vida que pulsa destas pessoas, onde despudoradamente me inclui, é contagiante.

Nunca fui consumidora de blogs pelo simples facto de me ser penoso ler em ecrãs. Salve, João Pedro George! que a lia e a levou a publicar em livro as crónicas de Ana de Amesterdam. Deve ter sido esta grafia que me levou a achá-la brasileira. E como isto está tudo enrodilhado, Portugal-Brasil, percebo que o título do blog trazia Chico Buarque de brinde.  As aflições da Ana Cássia Rebelo, as labaredas que lhe chamuscam os dedos (palavras da própria numa entrevista ao i de Setembro de 2019) renderam 217 páginas e não fosse o facto de o livro ser da biblioteca não o teria lido de um assentada. Conselho: ler a espaços, porque são crónicas e há umas bem dilacerantes.

Num dos últimos verões, creio que em 2020, comprei o Público de sexta por causa, sempre, do Ípsilon. Estava no topo da serra da Arrábida a ler a entrevista. Ana Cássia, senti, é cá das minhas. O que significa isto?

Fazer uso de um caos interior e incomportável para ofertar aos outros. É isso que significa ser cá das minhas. Tornar um “buço espectacularmente escuro e grande” e um “mênstruo coagulado” num “vermelho intenso, muito bonito” num momento sublime de leitura. Ela assume todo um inferno interior e é ele que a faz arrancar a toda a velocidade para as páginas digitais. Assume, igualmente, e na mesma entrevista ao i, que a baixa auto-estima a obriga à publicação imediata dos textos para validação em direto. Um risco, podia ter corrido tudo muito mal. Só que é exatamente o inverso.  A Ana Cássia, que nunca quis ser escritora, é habilidosa a contar as suas coisas, assim como as que observa, a maior parte delas sobre situações que preferimos cegar para. Como a Luísa, saco de pancada do marido – foi o texto que mais me marcou -, ou a Rosa, prostituta desde sempre. Há um fascínio pelo submundo, mundo-paralelo, mundo-margem, pelo qual também sou atraída a maior parte do tempo. O inferno interior que vive não lhe retira a visão sobre o outro, pelo contrário, parece aguçar. A Ana Cássia com os sentidos todos despertos.

Trazendo essas profundezas para o solo, Ana Cássia permite a libertação do feminino e mostra que um buço felpudo, uma halitose fétida, a sua própria morte, as intimidades mais intimas, fazem parte da vida e podem ser, como os designados momentos limpinhos e bonitinhos, pura poesia. Pode acontecer fazer um esgar de nojo, repulsa, negação, mas a semente já foi plantada.

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