A PALAVRA REVOLUCIONÁRIA

Um Homem Dois Séculos¸ de Fernando Miguel Bernardes, é um libelo. Momentos do quotidiano, sim, sempre envolvidos, porém, em indesmentível e penetrante militância política. Faleceu a 17 de Novembro, a um mês de completar 93 anos (nascera a 14-12-1929).

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Tive ocasião de, a 27.05.2009, apresentar, na Biblioteca Municipal das Galveias (Lisboa), o seu livro de poemas O Fio das Harpas e de prefaciar Notas de viagens – Ritmos e Mitos (Coimbra, 2015) e poemas ocasionais (Coimbra, Novembro de 2016), editados ambos por Mar da Palavra.

Companheiro de vultos grandes das letras coimbrãs e das lutas académicas (como Alberto Vilaça), autor de poemas que esses vultos musicaram, preso pela polícia política algumas vezes, indefectível defensor da candidatura de Arlindo Vicente e, depois da renúncia deste, entusiasta apoiante de Humberto Delgado, Fernando Miguel Bernardes fez da pena a sua arma. E recordo a página 68 de Poemas Ocasionais:

de armas na mão
e drones no ar
sem tripulação
e sabem matar

Na evocação de vultos da luta clandestina, mormente comunista, com quem se relacionou, no relato dos horrores psicológicos (e não só) da guerra no Ultramar, o escritor traça, nos capítulos deste livro, fragmentos que se não devem esquecer do que foi o suplício de quem ousou, pela escrita, minar o regime de antes do 25 de Abril, no aplauso evidente ao que a Revolução nos veio trazer.

Relata-se, por exemplo, o instantâneo entre dois militares em Angola. Um deles a alinhavar o aerograma para a sua amada: «Quem está comigo é a tua figura, Sylvie, a serena silhueta que vem apaziguar-me nos imprevistos, nas ciladas desta maldita situação…». Nisto, grita o ordenança (p. 109-110):

Meu Tenente!!
Não, Pedro, não me interrompas, não me digas nada agora.
Mas, meu Tenente!! Estamos a ser…
Ambos regressaram à Pátria, cada um em seu esquife.

Que melhor anátema se poderia esculpir em tão lapidar mensagem?!… Só um génio o poderia conceber assim, tão eloquente e incisivo!…

Contudo, se, como escreve a dado momento, de um século se passa para o outro num ápice, há outros gritos a não abafar agora. Respigo:

«Lá fora estava um dia triste; a mulher, com o rádio ligado para imaginar companhia, fazia arrumos em casa» (p. 121) – prelúdio do acto de solidariedade por parte da vizinhança à mulher cujo marido fora de supetão preso pela PIDE.

«A guerra ensinou a quem quis que nas picadas o trilho mais torto pode ser o que encontre a verdade mais a direito» (p. 142) – a sabedoria, colhida mesmo entre os abrolhos.

«Agora não se usa passar um empregado, mesmo eficiente e antigo, ao quadro efectivo – se é que essa figura laboral ainda existe… – de uma empresa». E prosseguia assim a inexorável corrente de pensamentos do recém-desempregado: «Quantos livros deixara entretanto, ao preço de saldo velho, no alfarrabista dos Fanqueiros? E os quadros que foram saindo das paredes, e poucos já eram, deixando-as nuas?». «Aos quarenta não se é jovem nem se é velho» (confirma-o a «olhadela à sinceridade do velho espelho», e pensa na «por enquanto ainda sua casa; cada vez mais nua». Nessas páginas 170-172, em palavras poucas, o drama pungente.

O jornalista: «Trabalho agora para uma multinacional de informação multimédia globalizada, de raízes entrosadas também neste país ainda à beira mar plantado… e regularmente nos é relembrado, em qualquer idioma ou por vezes traduzido na língua-pátria de Pessoa, até que ponto podemos ir… nem que seja para casa, e logo no dia seguinte» (p. 187) – que melhor retrato?

Réstias de esperança poucas, aqui e além, num desabafo:

«Humanos somos, na estrada nos encontramos e havemos de nos entender» (p. 191).

«Quem ensina é também quem aprende, quem aprende também em comunhão ensinará – basta querer fazê-lo» (p. 269).

Enfim, não estou arrependido de ter dado a um dos prefácios o título de «um poema, uma espada!» – que, militante, Fernando Miguel Bernardes nunca hesitou em, com ela, sempre cortar a direito!

Mais algumas obras publicadas de Fernando Miguel Bernardes

4 COMENTÁRIOS

  1. De: Leontina Ferreira
    3 de setembro de 2023 20:18
    Muito Obrigada por estes belos e profundos momentos de leitura.
    Confesso, com pena, não conhecer o autor. Mas o retrato que, em breves, mas também claras e sentidas palavras nos transmites, enquanto “prefaciador” ou “apresentador” — também escritor e crítico —é de molde a querer ler mais e mais. Há Homens talentosos, nem sempre devidamente reconhecidos.

  2. Eu conheci o Fernando Miguel Bernardes. Assisti também a essa sessão das Galveias e gostei muito de te ouvir. Ele também. Já digo como…
    A editora dele era a minha, a ESCRITOR, que então editava muita gente hoje mais famosa. O Fernando Miguel estava menos interessado na fama do que em ideais mais nobres: passar, por exemplo, pelas escolas do país para sessões de esclarecimento aos jovens, sobre as diferenças entre os antigo e novo regimes políticos.
    O nosso editor pediu-lhe para ele me apresentar um livro, era eu uma novata nas Letras. Eu indiquei a Livraria-Galeria Verney em Oeiras, dinamizada, dirigida, pelo Dr. Barão da Cunha que além de ser uma simpatia, não era elitista em relação à Cultura.
    Era tempo de sala cheia, o vereador do respectivo pelouro a prestigiar a sessão, a incentivar os autores. E não era no meu concelho…
    A sessão foi tão bonita, que pedi ao Fernando Miguel para me apresentar outro livro lá mesmo. Da primeira vez levei-os, a ele e à mulher, a jantar fora. Da segunda vez resolvi fazer o almoço e convidei-os lá para casa. “Ò Helena, faz peixinho, eu e a Isabel gostamos mais”.
    Falámos de muita coisa. Ele era um elemento dos órgãos directivos da APE e havia assunto de sobra. Mas veio à baila essa sessão das Galveias. Dizia ele exactamente assim:
    “Uma vez vi uma apresentação do José d´Encarnação…(não sei se sabes que o gajo é um Prof. universitário, Arqueólogo, Epigrafista etc, etc…do mais alto gabarito…e disse para comigo: é pá, tenho que ter este homem um dia a fazer uma apresentação de um livro meu. Percebeste as minhas razões, não foi? Diz lá se o gajo não é do melhor?”.
    Bom, eu já sabia e confirmaria mais tarde ao ter o mesmo privilégio. Mas o que muito me comoveu, antes do almoço começar, foi ele pedir-me que o deixasse mudar de lugar. O que lhe destinara tinha vista lateral lá para fora, para árvores frondosas e jardim, mas estava virado de frente para o móvel da parede.
    “Helena, olhar uma parede quando almoço ou janto, lembra-me sempre o espaço apertado da cela”.
    E depois almoçámos os robalos com batatinhas e verduras.

  3. As coincidências que a vida nos traz, Helena! Bem hajas por esta deliciosa partilha! Muito obrigado. Estava muito longe de saber dessa amizade comum. E fico muito contente.
    Quanto ao lugar à mesa, permite-me que relate uma cena. Estávamos em Cartago, num congresso. Um colega meu, espanhol, militante comunista, escolhíamos nós a mesa para o almoço e ele diz-me: «Quero ficar aqui, de costas para a parede e com ampla visão à frente». Porquê? – perguntei. «É uma norma da nossa militância…». Percebi. Por conseguinte, ao Fernando Miguel não terá sido apenas por lhe lembrar a cela que preferiu ficar de frente para a janela…

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