RENATO KIZITO, 80 ANOS

Fez agora 80 anos. É um ser humano notável. Merece mais do que uma crónica na net, mas quem dá o que tem…

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O avião era um Antonov russo. A bordo iam algumas toneladas de cereal e roupa velha, o contributo amealhado ao longo de meses de esforços do missionário Renato Kizito.
Estávamos no final de 1999, Kizito fazia a sua enésima incursão às Montanhas Nuba, no coração do Sudão.
Aquela era uma viagem proibida pelo governo em Kartum. Havia anos que todas as ONG de ajuda humanitária tinham sido expulsas das Montanhas Nuba. O governo não queria testemunhas dos métodos que usava para tentar vencer aquela guerra civil deflagrada 25 anos antes. Quase só o Comboniano Kizito teimava em desafiar a ordem estabelecida. Voámos 5 horas sobre o Sudão, desde Lokichokio, no Norte do Quénia, até ao interior das Montanhas Nuba, em território controlado pela rebelião do Exército de Libertação do Povo do Sudão, o SPLA.
O esforço de Kizito era notável, assim como era notável a sua capacidade de organização. Centenas de mulheres esperavam o avião e a preciosa carga que transportava. Os sacos de sorgo e a roupa velha foram carregados na cabeça dessas mulheres, numa longa fila indiana, durante um dia inteiro de caminhada até à aldeia mais próxima. Kizito era o único branco que visitava aquele povo cercado no alto das montanhas pelo exército governamental. Ele ouvia as histórias da guerra e contava as suas histórias de esperança. E dizia àquelas pessoas que o futuro seria mais justo e pacífico. E embora condenasse a guerra, dizia-lhes que tinham direito a lutar pela liberdade.

Lembro-me de assistir às missas de domingo que Kizito celebrava num altar de pedra esculpido pela Natureza. Ele gostava de dizer a missa de noite, ao ar livre, iluminado por archotes e sob uma magnífica abóbada de estrelas. Mesmo para quem anda longe deste tipo de fé, eram momentos mágicos.

Mas o velho missionário tem uma obra vasta. Basta referir o Kivuli Center, um abrigo para crianças de rua. É lá onde Kizito mora, num quarto com vista sobre o pátio onde os miúdos brincam no intervalo das aulas. Dezenas de crianças encontram ali uma casa. Não encontram uma família… embora Kizito seja pai e mãe daquela malta.

Os miúdos têm roupa decente para vestir, têm escola, alguns ainda têm a sorte de aprender uma profissão às custas de patrocínios que Kizito procura obter incessantemente. A falta de dinheiro é a maior aflição do missionário. Dar de comer a dezenas de rapazes, vesti-los e calçá-los, manter o edifício de pé e com um mínimo de goteiras possível, custa uma fortuna.
Um dia, Kizito teve uma ideia brilhante. Engatou um amigo de infância, padeiro de profissão, a ir passar uns meses a Nairobi. Já reformado, tempo não faltava ao velho padeiro. Kizito teve o cuidado de o prevenir sobre as condições em Riruta, o bairro degradado onde vive. Mas o amigo foi.
O padeiro italiano ensinou os miúdos mais velhos a fazer pão. Belos cacetes de pão italiano que passaram a ser vendidos à porta do Centro, na rua enlameada. O negócio foi um sucesso. O problema, então, passou a ser como garantir os fornecimentos de farinha e fermento, de modo a não falhar na produção.
Agora, já sabem. Se forem a Nairobi e se vos apetecer pão quentinho e estaladiço, têm de ir a Riruta, um dos imensos bairros de lata de Nairobi. Os carros dificilmente entram nas ruelas do bairro, mas não há que enganar. Terão de caminhar e… seguir o cheiro a pão fresco. Garanto-vos que será uma experiência e tanto.

Vale muito a pena visitar a página de Renato Kizito no Facebook. É uma viagem de emoções. Para mim, é recordar as circunstâncias em que me relacionei com ele. Uma das reportagens que fiz no Sudão, foi “co-produzida” com Renato Kizito, em 1999. Chamei-lhe “Dignidade”.

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1 COMENTÁRIO

  1. Que espectacular reportagem!
    Quantas lições de vida e dignidade de um povo (suas tribos) ameaçado de extinção…Tanta coragem revelada pelos seus membros, coragem alimentada pelo estímulo desses contributos de abnegação e grandeza de alma, que vivem com eles o perigo diário, a precária sobrevivência.
    E o mundo “civilizado” não sabe…finge não saber, silenciando mais esta manifestação de violência que os Princípios das Relações Internacionais em teoria condenam…
    Bem haja por publicar este fantástico documento, Carlos Narciso.

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