PEDIR ESMOLA!

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A senhora estava sentada, parecia absorta, no baixo peitoril da janela que dava para o passeio. Quando passámos, balbuciou umas palavras.

– Achas que nos pediu esmola?

– Nem percebi o que ela disse.

E continuámos a andar, não sem que nos tivesse surgido a ideia de que poderíamos ter parado, perguntado o que queria e agir em conformidade. Egoístas nos confessamos. E esperamos que, ao longo da tarde, sejam poucos os que tenham a nossa atitude.

Lembra-nos o conto «No money no trolley» (Fernando Miguel Bernardes, Um Homem Dois Séculos, Porto, 2017, p. 65-72), onde um marroquino, no aeroporto de Tânger, só lhe passaria o carrinho, se ele lhe desse uma nota verde.

Lembra-nos a figura medieval do esmoler, o frade que pedia para o convento; havia mesmo a figura do Esmoler-Mor do Reino, o eclesiástico que superintendia na administração das esmolas a dar por El-Rei.

Lembra-nos a célebre quadra do poeta mexicano Francisco Asís de Icaza, que está na Torre da Polvorosa, à entrada do Alhambra (Granada):

«Dá-lhe uma esmola, mulher, que nada há de mais cruel no mundo do que ser cego em Granada».

E, nas igrejas, as caixas para as esmolas – pelas Almas do Purgatório, em honra da Senhora do Rosário, de S. Judas Tadeu…

caixa das esmolas na Igreja Católica

Uma pesquisa na Internet fornecerá de imediato uma panóplia de imagens. Exemplificamos com duas: uma que apenas assinala MISSAS PARA AS ALMAS, isto é, o dinheiro ali depositado servirá para serem celebradas missas pelas almas do Purgatório ou pelas dos entes queridos falecidos de que se tiver intenção; outra, uma verdadeira arca (dir-se-ia), a imagem é (com a devida vénia) da autoria do Doutor Rui Carita, com uma inscrição que já mereceu decerto o devido enquadramento histórico, pois que, obra de um artífice do Porto e pertencendo à colecção do Dr. António Miranda (Galeria da Arcada), data de 1760, é dos ‘devotos da Santa Cruzada’ e, além de referir ‘esmolas’, alude também a ‘comutações’, o que, salvo o erro, alude a promessas feitas cujo cumprimento é comutado, substituído, pela entrega de determinada importância. Um mundo!

outra caixa das esmolas na Igreja Católica

Enfim, tudo isso se compreende: pede-se esmola para comer uma bucha, para um pacote de leite, para obras que dependam da generosidade do próximo (para usarmos um vocábulo de conotação religiosa). E se se pede esmola é mesmo com alguma finalidade.

Ora acontece que junto a um dos dois pequenos edifícios (um deles alberga um cruzeiro) que estão à entrada do Cemitério Velho da vila de Sernancelhe, concelho que pertence ao distrito de Viseu, foi há muito (decerto) pespegada uma pedra cuja inscrição diz o seguinte:

Que tipo de obras? Provavelmente da fábrica da igreja local, pensar-se-ia de imediato… Para o cemitério, difícil seria. Da jurisdição do município local, poderia ter acontecido, um dia, que, escasseando as reservas no erário municipal, se houvesse lançado geral peditório para o arranjo do lugar sagrado dos mortos. Disso haveria eco, decerto, na história local. Nada conseguimos apurar acerca de um cemitério em apuros. Nem se a pedra esteve sempre ali ou se veio – e quando – doutro local, como se afigura mais lógico, porque uma relação directa com algum dos dois monumentos que lhe estão ao pé não é verosímil.

Parece-se com um pedestal e – se chegou a servir – o recipiente para os óbolos estaria bem encastrado na face superior, para não levar rápido descaminho. O letreiro, enquadrado por moldura, foi gravado estando a pedra já amputada da sua parte direita, porque se distribui de acordo com o espaço deixado disponível após a quebra.

Único indício cronológico por onde os linguistas nos poderão ajudar é indicando-nos quando é que a forma verbal sam foi substituída por são. O monumento data de época anterior a essa alteração. Finais do século XIX, 1ª metade do séc. XX? Quem sabe?

Cá está, pois, um dos casos em que os epigrafistas não têm qualquer dificuldade em entender o que está expresso na pedra. O que ora nos intriga é, sim, a mensagem implícita: a que obras é que a mensagem se refere?

A esmola para o cego a gente entende: invisual, tem dificuldade em governar a vida; agora, pedir para umas obras, sem nós sabermos exactamente quais são, equivale àquele mal-estar que sentimos quando sabemos haver por i umas esmolas (por sinal, chorudas, dizem) dum tal de PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) e o vulgo sempre sem saber por onde é que elas realmente acabam por sumir…

Artigo em co-autoria com José Carlos Santos

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