Depois de ter lido aquela história do «escrito na pedra», em que o povo de Casteição fez questão de mandar gravar que fora ele que fizera a torre, uma colega minha desabafou:
«Estou a dar voltas à cabeça para descobrir como é que posso deixar o meu nome insculpido em pedra. Sempre é mais duradoura a memória».
De facto, é para tornar a memória mais duradoura que se pensa na tal gravação. Aliás, também nesse aspecto os Romanos nos ensinam: quando suspeitavam que poderia acontecer não terem ninguém para lhes perpetuar o nome nem que fosse sobre o sepulcro, encarregavam-se eles próprios do assunto.
Há, por exemplo, cerca de 700 inscrições funerárias romanas em que aparece a frase “se vivo“, em vida. Na cidade de Tebessa, na Argélia, achou-se o epitáfio do pedagogo Gaio Asiático Félix, que morreu com 80 anos e onde se refere expressamente “se vivo domum aeternam fecit“,fez em vida a sua eterna mansão. Numa inscrição do Museu de Navarra, em Espanha, se lê que Porcius Felix Karensis, de 70 anos, «se vivo fecit», fez em vida; aliás, não se poupou a despesas e quis uma epígrafe bem bonita, aqui captada pela câmara de Manolo Ramirez.
Numa inscrição romana de Salerno, Itália, se declara que Lúcio Rénio Crispino fez, em vida, o jazigo «para si e para os seus libertos e libertas e para os descendentes deles»!
Não cause esta atitude admiração porque, ao vermos, num cemitério actual, o de S. Domingos de Rana, o jazigo do carpinteiro Domingos Moreira e Família, ideia que presidiu foi essa: a de preparar, em vida, o lugar da morte.
Agora, se, no caso de jazigos e sepulturas, não há o perigo de que as pessoas não venham a morrer, pode ocorrer que instituições morram antes do tempo ou que eventos garantidos não venham a acontecer.
Contou-me o Doutor Jorge de Oliveira, catedrático de Arqueologia na Universidade de Évora, dois casos que tal exemplificam.
A Ditadura Nacional
Chamou-se Ditadura Nacional ao regime iniciado pela subida ao poder do presidente Óscar Carmona, a 25 de Março de 1928.
Tendo nascido com a consciência clara de que poderia durar pouco tempo, na medida em que os ventos nem sempre eram de maré, não quiseram os seus responsáveis deixar créditos por mãos alheias e decidiram meter ombros a algumas obras públicas, designadamente aquelas que o Povo há muito reclamava e que os regimes anteriores haviam postergado.
Estava nesse caso a Escola Prática de Agricultura, que fora criada em 1921, com enorme regozijo por parte da população, por corresponder às reais necessidades da formação de profissionais nesse ramo de tamanha importância no Alentejo. Ora aconteceu que, pouco e pouco, o êxito foi tal que se tornou necessário proceder à ampliação das instalações. As convulsões políticas lançaram o assunto para plano secundário e, por isso, assumido o poder, a Ditadura Nacional quis ir ao encontro das aspirações dos eborenses. As obras depressa se concluíram a contento e, prevendo-se para breve a sua inauguração, mandou-se lavrar esta placa, comemorativa da ambicionada ampliação do edifício da Escola Agrícola de Évora, actual Universidade de Évora, no denominado Conventinho da Mitra:
EDIFICIO AMPLIADO SOB O GOVERNO DA DITADURA NACIONAL ANO DE 1933 Sucedeu, porém, que, entretanto, Salazar logrou apressar também os trabalhos preparatórios da nova Constituição, que acabaria por entrar em vigor a 11 de Abril de 1933, dia em se publicou, no Diário do Governo, a acta da assembleia geral de apuramento dos resultados, largamente favoráveis, do referendo submetido à vontade popular. Pressa daqui, pressa dali – a inauguração da ampliação do edifício da Escola Agrícola acabou por fazer-se sem pompa nem circunstância, porque o tempo já era outro e a Ditadura já assim se não chamava. A lápide da Ditadura Nacional ainda chegou a ser colocada na fachada da antiga Escola Agrícola, no Conventinho da Mitra, e aí se manteve até às obras de requalificação do edifício por parte da Universidade de Évora, na década de 80. O que se faz à pedra? – perguntaram os pensadores arquitectos e engenheiros! Entregamo-la ao Jorge das arqueologias.... e a placa jaz, hoje, tristonha e desconsolada, com a data de 1933, no Laboratório de Arqueologia da Universidade de Évora!...
A grande caçada!
Está no Museu Municipal de Marvão uma lápida que diz o seguinte:
NESTE POSTO SE ALO- JOU SUA MAJESTADE EL-REI D. CARLOS I EM MARÇO DE 1907 PARA O ENCONTRO NU MA CAÇADA NA RAIA, COM EL-REI DE ES- PANHA D. AFONSO XIII HOMENAGEM DO MUNICIPIO DE MARVÃO, NA PASSAGEM DO 8º CENTENÁRIO DA SUA TOMADA AOS MOUROS POR D. AFONSO HENRIQUES
Está certo: aí, no posto fiscal dos Galegos, pernoitou el-rei. Sucede, no entanto, que – por inesperados motivos de segurança (Afonso XIII estava a ser alvo de atentados por parte das hostes republicanas) – Sua Majestade espanhola não viria a participar na caçada, que se realizou, sim, não na Raia, mas sobretudo em território espanhol, sendo el-rei D. Carlos I acompanhado por titulares espanhóis e portugueses.
Antecipara-se a Casa de Bragança a querer perpetuar uma efeméride, acrescentando a patriótica nota sobre o 8º centenário da tomada de Marvão aos Mouros; mas a placa – de excelente mármore de Estremoz, em bonitas letras doiradas – não foi colocada onde estava previsto e jaz hoje no museu a contar uma outra história.
Valerá a pena relembrar, a propósito, quanto os dois monarcas estiveram, de facto, envolvidos na promoção dessa zona fronteiriça, na medida em que se havia compreendido a importância da via férrea que por aí passava, na ligação de Lisboa a Madrid, via inaugurada com pompa e circunstância, em Valência de Alcântara, a 8 de Outubro de 1881.
Mas essa é, na verdade, uma outra história que, mui circunstanciadamente, Jorge de Oliveira, juntamente com António Mimoso e Filomena Torres, contam nas páginas 167-196 das Memórias das Freguesias de Santo António das Areias e Beirã, um número especial da revista Ibn Maruán, publicadoem 2021.
Letras doiradas, estas, que ora também doiram os meandros de uma história que não chegou a acontecer!
De: Jorge Forjaz
26 de agosto de 2023 08:14
Como sempre, um prazer ler-te.
E aí vai uma curiosidade – aqui em Angra, havia duas placas da Ditadura Nacional – numa ponte sobre uma ribeira, e numa escola. A da escola foi à vida e ninguém sabe dela. Era uma pedra!!
De: Cristina Neves
25 de agosto de 2023 19:36
Em 1881 já tinham compreendido a importância da ligação de Lisboa a Madrid por via férrea! Quase 150 anos depois continua por se fazer essa obra!
Um texto muito interessante.
Também me faz continuar a ter a veleidade de querer o meu nome numa pedra (para toda a eternidade, como escrevi num poema no Penedo da Saudade…) embora consciente da vacuidade das manobras de promoção pessoal.
O Senhor X de…tem uma lápide catita no topo da sua campa de mármore negro, onde a mulher, senhora de posses, mandou inscrever num período de mágoa: “aqui jaz um homem bom, chefe de família e pai exemplar”.
Há uns anos que não vou a cemitérios, mas dizem que ainda é comum sorrirem diante do letreiro e perguntarem os que o lêem:
– Mas este não era o que dava uma sova todos os dias na mulher?
– Era sim senhor…e os filhos, quase homens, apanhavam por tabela. Mas ela já voltou a casar e desta vez, muito bem.
Uma mentira prolongada no tempo, aquela lápide. Mas também não era boa publicidade para a senhora fazer diferente…
Bem hajas pelo texto, José d´Encarnação, que me trouxe memórias “excelentes”. Uma delas irei partilhar aqui um dia destes…
De: Rui Cascão
26 de agosto de 2023 11:18
Obrigado por mais este contributo para a análise crítica da documentação epigráfica.
Trata-se de um bom exemplo de que nem tudo o que parece é.
Mais uma razão para se reforçarem as medidas de controlo e de validação da veracidade dos dados recolhidos.
Deparei-me com casos semelhantes em informação recolhida em fontes manuscritas e impressas.