No intuito de se preservar o vestígio representativo da antiguidade de um lugar – sempre gostamos de saber das nossas raízes! – multiplicam-se as iniciativas de identificar as velharias que por lá se encontraram. Isso acontece em Moimenta da Beira.
Relêem-se cuidadosamente os escritos de outrora; vasculham-se campos, muros e entulheiras. E, de vez em quando, a caçada surte efeito e o Passado lentamente ressuscita. Alegria maior ainda quando, em vez de simples lugarejo ou muda sepultura, se antoja a possibilidade de por ali ter existido uma cidade!…
O testemunho dum monge franciscano
Decidiu o monge franciscano Joaquim de Santa Rosa de Viterbo (1744-1822), académico correspondente da Real Academia das Ciências e Lisboa, ocupar o seu tempo a redigir, em dois volumes (2ª edição em 1865), um Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram. Reza logo o frontispício da obra que ela é«indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam» e que, por isso, se considera tal publicação «em benefício da Litheratura Portugueza».
E fez muito bem o frade, porque a ele vamos beber muito do que sempre gostamos de saber acerca das nossas terras. Assim, sobre a região de Moimenta da Beira escreveu:
«Junto de Caria, no lugar de Vide e seus contornos, se têm descoberto sucessivamente muitas inscrições e pedras sepulcrais, que nos fazem crer que havia por estes sítios alguma povoação famosa no tempo em que os romanos dominaram a Península Ibérica».
Aí bebendo inspiração, o Padre Manuel Gonçalves da Costa, membro da Academia Portuguesa da História desde 1975, autor da História do Bispado e Cidade de Lamego, publicada em 1977, acrescentou o seguinte:
«Entre as demais merece referência a estância romana de Vide, rica em inscrições sepulcrais e restos arqueológicos, sobre o planalto que a separa de Granja de Oleiros, onde se situaria a cidade de Rochela, ou Arrochela, topónimo conservado na tradição».
A propósito de antiguidades locais, com frequência se refere o nome de Pinho Leal. Trata-se de Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal (1816-1884), que, na 2ª metade do século XIX, quando, por toda a parte, as antiguidades começaram a ser mais apreciadas, se decidiu a escrever o, de certo modo, monumental Portugal Antigo e Moderno, dicionário em que «todas as cidades e freguesias de Portugal e de grande número de aldeias» foram analisadas, notáveis – como explicou – «por serem pátria d’homens célebres, por batalhas ou outros factos importantes que nelas tiveram lugar, por serem solares de famílias nobres, ou por monumentos de qualquer natureza ali existentes». A respeito de Arrochela, onde afirma existirem «alicerces de muros e tijolos grossíssimos”, dá pormenores:
«Em 1872, um proprietário achou na sua vinha seis quilos de moedas de cobre, do tempo dos Romanos ou anteriores; outro encontrou também moedas, guardadas entre uns tijolos dispostos em forma de caixa, e ofereceu-as à Câmara Municipal do Porto. Em 1877, um jornaleiro encontrou, a um metro de profundidade, um vaso de barro coberto com uma pedra, tendo dentro dois quilos e meio de prata em bruto e algumas moedas romanas».
Os testemunhos mais recentes
No seu livro Os oito concelhos de Moimenta da Beira, de 1984, o padre António Bento da Guia salientou que «certamente é a cidade que a tradição diz estar sepultada nos terrenos que vão da Capela de São João, passam por Vide e se estendem até ao Rapado, nos Arcozelos».
Mais recentemente, o Doutor João Luís da Inês Vaz não hesitou em sugerir que a capital de uns povos pré-romanos, os Arabrigenses, poderia ter sido mesmo na área da maior concentração de achados arqueológicos, isto é, no triângulo definido pelas povoações de Caria, Vide e Rua, adiantando que «além da tradição da existência da cidade de Arrochela, há toda uma continuidade de povoamento que levou a que, na época seguinte, ali se estabelecesse uma paróquia suévica, com o nome de Omnia, topónimo que ainda hoje sobrevive nas freguesias de Sernancelhe e Caria».
Pesquisas recentes levaram, de facto, à identificação de inscrições funerárias romanas e de miliários (marcos que, nas vias romanas, indicavam as milhas), a demonstrar que tinham razão os antigos: houve por ali gente desde as mais remotas eras!
Aliás, não deixara, por exemplo, Frei Bernardo de Brito (1569-1617) seus créditos por mãos alheias e, para reforçar a importância da zona, até inventou que por ali passara o general romano na sua luta inglória contra os Lusitanos, ali perdera uma batalha e ali tivera, pois, que sepultar um dos seus melhores homens, mandando gravar-lhe o seguinte epitáfio:
«Consagrado aos deuses Manes. Gaio Posidónio, cavaleiro romano, do Monte Viminal, impelido contra os bárbaros vencedores, tendo o cavalo arremetido fortemente, sucumbiu. Décimo Júnio Bruto, levado pelo amor e pela benevolência, tratou de aparelhar este monumento. Que a terra te seja leve».
A História a entrecruzar-se, pois, com a ficção, na vontade generalizada, de todos os tempos, de se ajuntar mais um ponto, mesmo que fictício, aos pontos que realmente existem.
Artigo em co-autoria com José Carlos Santos
Teve o Doutor Rui Centeno a gentileza de proceder à classificação da moeda apresentada. Trata-se de um antoniniano da imperatriz Salonina, mulher de Galieno (Anv./ SALONINA AVG, Busto com diadema e manto à dir., sobre crescente). Provavelmente cunhado em Roma, post 259.
Rui Cascão
12 de agosto de 2023 10:09
Caríssimo Amigo
José d’Encarnação
Muito interessante, como sempre.
Lamentável é que, muitas vezes, não tenha havido a preocupação de conservar todo o património arqueológico, por descuido, ignorância ou fatores económicos. Foi o caso de uma rica estação situada no local dos Pardieiros, limite da Pena, concelho de Cantanhede, terra natal dos meus Pais, que foi literalmente arrasada por causa dos interesses de uma empresa de extração de calcário. Felizmente foi recuperado um tesouro monetário com alguns milhares de moedas (depositado no Museu Machado de Castro) e outro material, que não sei onde pára. Também há peças em mãos de particulares. O nosso Amigo Carlos Cruz deixou registada na Carta Arqueológica do Concelho de Cantanhede toda a informação que compilou.
Talvez o texto ajude a despertar o ensejo ba busca dessa mágica cidade!…
Atravesso a Vila da Rua muitas vezes e olho sempre esse território cheio de memórias. Ali levei pela primeira vez o Doutor João Vaz, meu companheiro de docência no Liceu de Viseu e a vez primeira o levei ao próximo Castro de Goujoim, aí para fazer o cuidado registo do Términus Augustális de onde chovendo, regressamos ao carro, vão anos…
Um abraço.
A. Correia
Contente eu, meu caro Alberto, por ter despertado em si tão saudosas memórias!…
Encantada com estes painéis que realidade e ficção vão compondo, só posso dizer que gostava de encontrar, pelo menos uma vez na vida, uma moeda destas e depois investigar tudo sobre a personalidade da efígie.
Entusiasmada fui procurar. Afinal o antoniniano valia dois denários…Sobre o denário de prata e a sua frequente circulação em Roma, já eu tinha lido. Agora só me falta saber sobre a imperatriz…
Não terei tempo para tanta curiosidade, mas agradeço a José d´Encarnação suscitar este interesse nas História/Arqueologia/Epigrafia.