A Culpa de Donald Trump (1)

A primeira vez que ouvi falar em Donald Trump foi no programa da Oprah Winfrey, há talvez 20 anos atrás. Era um homem de negócios que prezava levar os filhos para todo o lado, ou pelo menos era assim que se apresentava. Uns anos mais tarde segui o seu programa The Aprendice, que talvez tenha definido a sua imagem de marca na frase “you are fired”. Nunca mais ouvi falar nele, até que em 2016, perante a perplexidade de toda a imprensa nacional e internacional, Donald Trump tonava-se o 45º Presidente dos EUA.

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Achava uma certa piada à personagem, sem preconceitos, ideologias ou ideias pré-formadas. O que conhecia dele era o que transmitiam os programas de televisão, um pouco à semelhança de ver o Marcelo Rebelo de Sousa no noticiário da noite da TVI. Desconhecia por completo o histórico dele como empresário do jogo e personagem mediática, sempre no centro dos fait-divers dos tabloids norte-americanos. O burburinho dos media em torno dele trazia memórias em torno da figura do Bush filho, que “roubara” a eleição ao Al Gore, mas –  enfim – a política norte-americana tem sempre a sua dose de espetáculo e este nem era o primeiro presidente a vir do mundo de Hollywood.

Hoje acredito que, sobretudo depois dos confinamentos em Itália, ter Trump ao leme da nação mais poderosa do Mundo foi o que contribuiu para o caos mundial que se seguiu. E afirmo isto porque entendo que, fundamentalmente, Trump não é um líder, antes um chefe que chefia pela divisão, pelo impulso emocional e pelo instinto.

A geopolítica em 2020

Nos inícios de 2020, os EUA e a China estavam no meio de uma feroz guerra comercial, com quase dois anos de círculos de reivindicações, multas e retaliações, bem como negociações que se mostravam infrutíferas. Desde 2018 que a administração Trump impunha tarifas sobre o comércio com a China. Xi Jinping retaliava, tornando cada vez mais difícil para os EUA exportar ou importar da China. Consumidores e produtores de ambos os lados sofreram, mas a China, em particular, viu as suas importações caír bastante a partir de outubro de 2018.

A situação não melhorou com os confinamentos. Trump encerrou as viagens para a China em 31 de janeiro de 2020, pensando que isso manteria fora um vírus que já estava nos Estados Unidos há pelo menos seis meses e ao qual se referia continuamente como “vírus da China”.  O resultado foi outro golpe no comércio EUA-China.

O vice-assistente de Anthony Fauci, H. Clifford Lane, foi à China em meados de fevereiro de 2020 para observar como a China, supostamente, esmagara o vírus por meio de confinamentos. Com base num relatório da OMS, instou os EUA a seguirem o mesmo curso. Trump concordou, mediante a insistência de Fauci, Deborah Birx e seu genro, Jared Kushner, bem como do vice-presidente Mike Pence.

O que se seguiu foi a extraordinária recuperação do comércio com a China, principalmente devido à compra de equipamentos de proteção individual (máscaras, luvas, aventais, cotonetes, etc). Este episódio, aparentemente banal na histórica da pandemia de Covid-19, deu início a uma grande recuperação do comércio EUA/China, atenuando, pelo menos momentaneamente, a guerra de gigantes que se travava pela hegemonia global.

A administração Trump

Um dos primeiros livros que surgiram no mercado sobre a administração Trump, “Fire and Fury” de Michael Wolff, criou polémica pelos comentários depreciativos à gestão proferidos por Steve Bannon, nada menos que o homem a quem é apontada a razão da vitória de Donald Trump nas eleições de 2016. O ex-estratega-chefe da Casa Branca esteve pouco tempo no cargo e não poupou nos insultos ao “ex-patrão”.

A este sucederam-se outros tantos títulos a constatar o estado de auto-gestão e desgoverno em que se encontrava a Casa Branca, com o presidente a ser manipulado pela burocracia – o deep state – e os seus próprios secretários de Estados, os quais se sucediam uns aos outros a um ritmo alucinante, sendo contratados e despedidos pelo mesmo impulso furioso. Se Trump não confiava em ninguém, o sentimento parecia ser mútuo, multiplicando-se os jogos de bastidores para “tentar” que o presidente eleito não destruísse o país.

O famoso jornalista Bob Woodward chamou ao seu livro sobre a administração Trump “Fear” (Medo), citando as palavras do próprio presidente quanto ao sentimento que deve ser usado para controlar as pessoas.

Quem lê aquelas páginas, porém, fica na dúvida se quem rodeava Trump tinha efetivamente medo dele, se das consequências das suas ações. Aparentemente ninguém controlava Trump, mas rapidamente aprenderam a controlar o que ele via, ouvia e lia, conseguindo assim condicionar a sua perceção da realidade e, com isso, as suas decisões. A Casa Branca não era por isso, propriamente, um centro de terror, mas antes uma espécie de circo, onde as ilusões e os malabarismos auxiliam o espetáculo do palhaço central.

Esta situação acabou por influenciar as decisões de Trump em relação à China no período da Covid-19, contrariando a postura de distanciamento que vinha definindo até então. Jared Kushner conta o seu lado da história no seu livro “Breaking History”.

“O sistema que estabelecemos na FEMA desencadeou um esforço global de aquisição não visto desde a Segunda Guerra Mundial. Boehler, Smith e a equipe da FEMA entraram em ação, ligando para todos os principais fornecedores médicos do mundo numa corrida para comprar milhões de máscaras, aventais, luvas, cotonetes de teste e outros suprimentos essenciais. Como obtemos suprimentos de todo o mundo, descobrimos que as fábricas com mais suprimentos disponíveis estavam na China. Apesar da abundância de produtos, o governo chinês estava impedindo que os suprimentos saíssem do país. Eu sabia que com o tempo os americanos seriam capazes de fabricar muito do que precisávamos, mas naquele momento não tínhamos tempo a perder.

Precisávamos perguntar ao governo chinês se ele nos permitiria comprar suprimentos, o que significava que precisávamos lidar com a crescente tensão entre nossos dois governos. À medida que o coronavírus passou de um problema localizado em Wuhan para uma pandemia global, a retórica do presidente em relação à China tornou-se cada vez mais antagônica.”

O que fazer? Kushner precisava persuadir Trump a relaxar na sua atitude em relação ao comércio com a China.

“Fui falar com Trump em privado”

 “Estamos a lutar para encontrar suprimentos em todo o mundo”, disse eu a ele. “No momento, temos o suficiente para passar a próxima semana – talvez duas – mas depois disso pode ficar muito feio muito rápido. A única maneira de resolver o problema imediato é obter os suprimentos da China. Você estaria disposto a falar com o presidente Xi para desescalar a situação? ”

 “Agora não é hora de ser orgulhoso”, disse Trump. “Eu odeio estarmos nesta posição, mas vamos tratar isso.”

Entrei em contacto com o embaixador chinês Cui Tiankai e propus que os dois líderes conversassem. Cui gostou da ideia e fizemos acontecer. Quando eles falaram, Xi foi rápido em descrever as medidas que a China havia tomado para mitigar o vírus . Em seguida, ele expressou preocupação por Trump se referir ao Covid-19 como o “vírus da China”.

Trump concordou em abster-se de chamá-lo assim, se Xi desse aos Estados Unidos prioridade sobre outros para enviar suprimentos para fora da China . Xi prometeu cooperar. Daquele momento em diante, sempre que eu ligava para o Embaixador Cui com um problema, ele resolvia imediatamente.”

Deste modo, logo após os confinamentos dos EUA, Trump ligou para Xi e Xi disse a Trump, novamente, como os confinamentos eram bons, pedindo-lhe que parasse de culpar a China pela situação pandémica. Trump concordou em interromper a retórica de culpabilização da China. Face ao que Trump considerou ser uma emergência, o comércio foi restabelecido com a China.

Algumas das fábricas que fabricavam EPIs na China eram americanas, especialmente uma de propriedade da 3M, uma empresa americana que há muito tempo terceirizava a sua fabricação para a China. Trump ligou para o CEO e pediu os seus EPIs, mas a administração objetou e disse que a China não permitiria. Trump invocou o raramente usado Defense Production Act (1950) e disse que agora a 3M tinha que vender aos EUA os equipamentos de proteção individual.

Kushner continua a história:

Mais tarde, liguei para [Mike] Roman [CEO da 3M) e disse a ele que lhe estávamos enviando um contrato para todas as máscaras da 3M na China.

 “Não posso vendê-los para você”, disse ele. “O governo chinês assumiu minha fábrica e está controlando minha distribuição.”

“Isso não é mais problema seu,” eu disse. “É um problema nosso. Sob o DPA, controlamos tecnicamente sua empresa. Vamos enviar-lhe um contrato e a lei federal exige que o assine. Você pode dizer aos chineses que não teve escolha.”

Em trinta minutos, Roman assinou o contrato e as máscaras eram nossas . Agora eu tinha que trabalhar com os chineses para levar as máscaras para a América .

Kushner não diz quanto valia o contrato ou quantos dólares de impostos foram destinados à empresa americana com operações de fabricação na China. Mas ele diz quantas máscaras os EUA compraram: 46 milhões de máscaras por mês durante seis meses.

E a nota final:

Assim que Roman viu que havíamos usado a diplomacia para resolver a situação com o governo chinês e que não pretendíamos tomar o restante de seu suprimento global, ele ficou muito mais agradável. No final, ele e a 3M se tornaram grandes parceiros nossos.

Em retrospetiva, torna-se difícil perceber até que ponto houve uma real crise de saúde pública ou uma crise nos círculos políticos, perdidos nas próprias quezílias imperialistas. A escassez de EPIs não foi diferente da suposta falta de ventiladores: especulações, que impulsionavam soluções frenéticas, que acabavam a procurar um problema para resolver, criando apenas mais caos face a uma generalizada tentativa de não perder força política num confuso panorama internacional.

A desinformação

A subida de Trump ao poder e a guerra comercial com a China acompanhou um contexto informativo onde as redes sociais, dominadas por bots e algoritmos preditivos de comportamento (hoje chamado de Inteligência Artificial), começaram a criar uma confusão generalizada entre o que é a verdade e o que é a ficção. Se por um lado assistimos às velhas táticas do marketing agressivo – uma herança da propaganda política da primeira metade do século XX – a saltar para as plataformas de comunicação digitais, por outro vimos os próprios jornalistas, os supostos cães de guarda da democracia, completamente perdidos nessas mesmas redes digitais. Não por mero acaso, as redes sociais, num padrão que já vinha da televisão e depois começou a ganhar força com os blogues, estão a roubar o negócio aos jornalistas e a confundir completamente as regras do jogo.

Em quem acreditar?

Donald Trump conviveu com os meandros da informação espetáculo desde os anos 80, infiltrando-se nos tabloids como fonte, nos programas de televisão como apresentador e homem de negócio de sucesso e nas redes sociais como voz forte do Twitter. Sabia, por tal, manipular a perceção da realidade para ser noticia. Quando ele apontava “fake news” a um jornalista, o que ele estava de facto a dizer era: eu sei manipular-te, pelo que não venhas agora dizer-me que sabes a verdade. Trump sabia que ele próprio era uma “notícia falsa”, mas isso não impediu que fosse notícia durante 40 anos, ao ponto de se tornar o 45º presidente dos EUA.

Em 2020, face aos caos informativo que ele próprio ajudara a criar, Donald Trump teve finalmente que tomar uma decisão crucial, que definiu a sua administração e ditou a sua derrota no final do ano.  Ao confinar, Trump cedeu ao establishment, prova mais que suficiente que ele não é nem nunca foi um líder anti-sistema, antes alguém a querer desesperadamente que o levem a sério. Agiu por instinto num cenário de crise completamente novo e para o qual não tinha referências, fazendo o que julgava ser a melhor atitude para sobreviver.

A questão que podemos colocar é: o que levou efetivamente Donald Trump a confinar se inicialmente apostou na direção oposta?

Deborah Birx relata no seu livro que Trump teve um amigo morto num hospital de Nova York e foi isso que o fez mudar de opinião. Jared Kushner, por seu lado, relata que ele, simplesmente, ouviu a razão. Mike Pence diz que Trump foi persuadido de que, ao confinar, a sua equipa o respeitaria mais. Não parece portanto haver dúvidas (e com base em todos os relatórios existentes) de que Donald Trump se viu cercado por “consultores de confiança” que o conduziram a tomar esta atitude, nomeadamente um grupo de cinco pessoas que incluía Mike Pence e o membro do conselho da Pfizer, Scott Gottlieb. A 23 de junho de 2020, Trump exigia crédito por ter seguido todas as recomendações de Fauci.

É aqui que, acredito, se encontra a verdadeira culpa de Donald Trump, mostrando que ele é o produto por excelência do mesmo sistema de desinformação que afirma criticar. Um bom líder teria procurado informação contrária à que lhe era ditada pelo seu grupo de “amigos”, a fim de tomar decisões em consciência e não por impulso. As decisões de Trump apostaram no imediatismo e no sensacionalismo, acompanhando a desorganização informativa do momento. Num mundo onde não se sabe o que é verdade e o que é mentira, o melhor é seguir a corrente…

Ler também “A Culpa de Donald Trump (2)”

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