Há dias em que, perante o rol de notícias que nos impingem, uma pessoa só lhe apetece um cantinho e “deixa-me aqui sossegado”. Outros há em que o grito constitui tábua de salvação. Palavras d’ordem ouvem-se todos os dias; outras, porém, parecem esconder-se em ‘maioria silenciosa’. Pois é mesmo com palavras que gostávamos de acordar quem está dormente…
Authority control
E a primeira é uma que está na ordem do dia: autoridade.
Imagine o amigo que, no Estudo Geral da vetusta e vernácula Universidade de Coimbra (vetusta de 733 – setecentos e trinta e três! – anos), quando aí insere um dos seus trabalhos científicos, carece de passar pelo ‘controlo de autoridade’, assim como os nossos jornalistas, na Ucrânia, têm de se apresentar no posto de fiscalização e, aquando do Muro de Berlim, havia o check point e a gente, hoje, até se deixa fotografia ao lado dos militares fardados a rigor, como que para mostrar que… passámos!
Não há, obviamente, no Estudo Geral, uma verificação de autoridade, mas sim de autoria. «Autoridade» deriva de má tradução, literal, da palavra inglesa ‘authority’, que também não quer dizer autoria, em inglês é authorship.
Poder-se-ia pensar que – tendo sido cometido um erro – as instâncias responsáveis, se para ele fossem chamadas à atenção, rapidamente o corrigiriam.
Pois acontece que não.
Contactou-se a direcção do mais antigo Curso de Especialização em Ciências Documentais que, desde 1935, existe, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, porquanto esse arquivo bibliográfico está nessa área de conhecimento. Que não, não podia mudar-se, estava assim determinado há muito, não era agora que se ia mudar.
Contactou-se a Direcção-Geral da Biblioteca Nacional de Portugal, entidade que superintende nestas lides. A resposta, mui gentil e pormenorizada, que se agradece, veio a 26 de Abril p. p.
Após a explicação de que «o termo “controlo de autoridade” é profissional» e que esse «mecanismo inclui a existência de registo e remissivas das várias formas alternativas para a forma usada como “autoridade” que, em termos técnicos, significa “autorizada”, ou preferida, no catálogo em questão», esclarece:
«Como o controlo de autoridade é uma função interna dos catálogos que não se refere apenas a nomes de autores, não significa “autoria”, é um conceito técnico mais lato. Em inglês authority control, em francês “contrôle d’autorité”, em castelhano “control de autoridad” etc.».
E acrescentou-se:
«O que não é costume, nem é normalmente necessário, é presentear o público com o termo técnico no interface dum sistema, pois pode gerar confusão. Normalmente os ficheiros de autoridade não estão disponíveis nos catálogos ao público».
Lute-se, pois, para que a confusão se desfaça!
Os papers!
Um investigador, dantes, escrevia artigos, ensaios, recensões em revistas da especialidade, amiúde nas revistas que a sua Faculdade ou Departamento criara justamente para dar a conhecer a investigação que, no seu seio, estava a realizar-se. Sempre na sua língua materna, mormente porque, por melhor a ‘manusear’ que as alheias, ela se prestava a mais correctamente exprimir as minúcias do seu pensamento.
Hoje escreve papers, ou seja, literalmente, «papéis», mesmo que, cada vez mais, nem papéis cheguem a ser, porque o digital vai, inexoravelmente, ganhando terreno. Por isso, as revistas portuguesas já não se mostram disponíveis a aceitar qualquer colaboração dentro do âmbito dos objectivos para que foram criadas: fazem call for papers, ‘gritam por papéis’, como o Mariguta da minha infância passava na rua e apregoava ‘ferrevelho’!
Depois, esses papers vão ser submetidos a apreciação. Aliás, quando o investigador responde, ele não diz que ‘propõe’ ao director humano da revista a publicação desse artigo ou ensaio ou texto, ele entra numa plataforma provida dum frio algoritmo e… submete! Qual escravo que se ajoelha perante o senhor e aguarda, humilde, a sentença. Sentença, sim, porque, entrado sem rosto na engrenagem da plataforma, há todo um percurso esterilizado, dito de submissão a juízes sem rosto também. E se o juiz gosta, a sentença é boa; se não é da sua laia ou vai contra o que ele considera a Verdade, arrisca-se à extradição, à pena suspensa ou mesmo à pena maior.
Por isso, o candidato a escriba – ainda que, até agora, haja dado boas provas e até alguns o considerem competente no que investiga – opta por, mal ou bem, redigir em língua inglesa e candidatar-se (seja o que Deus quiser!) a uma revista que esteja devidamente inscrita numa daquelas plataformas mundiais – a Scopus, a Web of Science… – que dão cá um sainete de alto lá com o charuto ou, dito de uma forma académica, «mui elevado prestígio». Ah! ia-me esquecendo: nada de reticências ou pontos de exclamação! Isso ‘cheira’ a linguagem coloquial e a ciência pura e dura não se compadece com o tu-cá-tu-lá, carece de pairar numa esfera superior!…
Acabara eu de escrever estes desabafos mal amanhados quando o Peter, alemão dos quatro costados, natural de Hamburgo, a cidade alemã mais portuguesa, amante como ninguém da língua portuguesa (até já foi galardoado por isso!), me brindou com duas dúzias de palavras lusas que, em língua alemã, precisam de circunlóquio para serem traduzidas. Indico, por agora, só uma delas e pasme-se: ensancha – porção de pano que se deixa a mais na costura duma peça de roupa, para poder alargar-se, quando for preciso!
«Ensancha» não tinha entrada, não, numa revista patrocinada pela Scopus ou pela Web of Science!…
Tiveram colegas e confrades a gentileza de me fazer chegar os seus comentários acerca do que escrevera. Em vez de ‘multiplicar’ os comentários, tomei a liberdade de os ‘recortar’, libertando-os das fórmulas de saudação, para deixar o essencial.
A todos estou muito grato.
Eis o rol, neste momento:
Aires Gameiro
23 de julho de 2023 11:47
Acabou por ser com muito gosto que li o anexo do Confrade.
Já me aconteceu recusarem um artigo numa revista e dizerem como é que tinha de o corrigir. Desisti e escrevi que desistia. Já me recusaram um outro paper nas atas de um congresso de pois de o ter apresentado no congresso e agora estou à espera de uma sentença para um outro…
uma proposta de comunicação com título, resumo em português e inglês para outro congresso…
Tudo tem que ser eruditamente correto.
Obrigado.
Armando Martins
23 de julho de 2023 13:01
Um grande obrigado pela tua lembrança. Até onde nos levará esta onda gigante de mediocridade triunfante?!
Carlos Salema
24 de julho de 2023 11:54
Gostei da sua mensagem e li-a com atenção e proveito.
Há no entanto, um pormenor que a meu ver não é de somenos importância.
Tal como séculos atrás se usava o latim como a língua da ciência hoje a língua
da ciência é o inglês. E é muito difícil fugir a esta realidade.
Mudam-se os tempos mudam-se as vontades …
Adelaide Chichorro
23 de julho de 2023 23:36
É mesmo… Acachapamo-nos. Que bom lê-lo, Colega! Haja quem pense.
Maria Fátima Gil
23 de julho de 2023 10:01
Comecei o meu domingo com o seu texto e umas boas gargalhadas, mas partilho a sua indignação quanto à humilhação dos investigadores e ao abastardamento da língua portuguesa.
Se nós nos submetemos (no sentido português do termo) a esta colonização linguística sem qualquer protesto, não podemos reclamar de os nossos alunos já se não ficarem apenas por traduzir literalmente palavras do inglês e estarem a usar, cada vez mais, a sintaxe inglesa na sua (e nossa) língua materna.
Eu ensino literatura e cultura alemãs, mas um amigo meu diz que sou um caso óbvio de “professora de Português transviada”!…
Augusto Ferreira do Amaral
23 de julho de 2023 23:55
Gostei imenso de ter notícias suas e de ler o seu comentário, que muito aplaudo.
Tenho montes de ideias – algumas talvez certas, outras muitas provavelmente erradas – sobre a problemática versada.
Graça Capinha
23 de julho de 2023 11:10
Esta é uma luta antiga e diária que travo todos os dias, com estudantes e, infelizmente, também com colegas.
Numa faculdade que devia ter como principal responsabilidade defender a língua.
Desta questão nem me tinha ainda dado conta.
Um dia destes acordamos e a nossa língua desapareceu. Passámos todos simplesmente a falar inglês.
Uma tristeza!…
Hermenegildo N.G. Fernandes
24 de julho de 2023 09:54
Enquanto membro da maioria silenciosa, agradeço muito o envio do texto. E proponho que renunciemos aos “papers”. Enfim, que ensanchemos…
maria helena coelho
23 de julho de 2023 11:45
Bate-lhes!…
Muito gosto dos teus artigos a “malhar” no despotismo iletrado do inglês que é uma língua altamente redutora face às línguas mediterrâneas.
joao abel da fonseca
23 de julho de 2023 11:47
Li, com muito apreço, o seu artigo e agradeço a partilha.
Na verdade, cada vez mais nos deparamos com modernices.
Uma outra, depois de se ter passado no crivo de avaliadores das propostas, em sede de «call for papers», ainda somos avisados que, posteriormente, com vista à publicação nas actas, os textos das comunicações apresentadas serão submetidos a um «scientific referee», quais árbitros, juízes ou peritos que decidirão se aqueles têm valia suficiente!
Estes critérios editoriais de avaliação científica ocorrem dilucidados nas normas da Columbia University:
“When one submits a paper describing one’s research to a scientific journal (at least the reputable ones), the editor chooses one or more scientists expert in the field to review or “referee” your paper. The referee recommends either acceptance or rejection of the paper, and furthermore provides extensive comments on how the work could be improved or its description clarified. The author must respond to each of the points raised by the referee when submitting a revised version of the paper. This process is a part of the healthy skepticism that is a hallmark of science”.
Não lhe vou roubar tempo a relatar os pormenores de um episódio recente em que me vi confrontado com o parecer de um avaliador, digamos que um desses supostos peritos, árbitros ou juízes. Tratava-se de um assunto que investigo desde 1987, sendo que nunca encontrei alguém que lhe tivesse dedicado especial atenção e, muito menos, tivesse publicado documentação inédita por mim encontrada em vários arquivos, tal era o meu caso. Lá me «defendi» argumentando sobre o teor das recomendações, todas elas rebatidas e evidenciadas como despropositadas. Nada me responderam, mas, sem que o esperasse, o artigo foi publicado.
Tenho por hábito dar a ler os textos a colegas, por mim entendidos como conhecedores dos assuntos, ou pares. Quanto aos tais avaliadores, dado que o seu nome nunca é revelado, ficamos sem saber quem anda a avaliar-nos.
vasco gil mantas
23 de julho de 2023 14:28
Parece-me perfeitamente apropriado o que escreves. Em nome nem sei bem de quê estamos a aceitar demasiada “autoridade” na elaboração de trabalhos científicos. E nem sempre por razões de qualidade, para isso existem os comités de redacção que se devem pronunciar sobre esses aspectos. á algum tempo, por exemplo, fui aconselhado a retirar a palavra indígena de um artigo, ao que anui, para não levantar questões ainda mais inúteis, o que me deu um trabalhão para refazer frases em que me referia aos autóctones de uma ou outra região… (reticências)!
Manuela Chaves
23 de julho de 2023 11:47
Muito interessante! Obrigada.
Manuela Mendonça
23 de julho de 2023 16:52
Perdoadíssimo e carregado de razão. Pena é que a ignorância continue a imperar!!!
Marco Daniel Duarte
24 de julho de 2023 12:26
agradeço o texto, no qual totalmente me revejo. Espanta-me, sobretudo que as Academias não se questionem e tudo absorvam a partir da língua franca, aqui sem o rigor académico que lhes seria de exigir. E, assim, vem sempre à lembrança o meu conto preferido: o rei vai nu.
Pe. David Bernardo
23 de julho de 2023 11:52
Este artigo é tão importante como atual. A mania do estrangeirismo… Belíssimo artigo. Apetece-me dizer como o Evangelho de hoje, a respeito das parábolas da sementeira, do grão de mostarda e do fermento, Jesus, depois de explicar, acrescenta e termina: “…quem tem ouvidos, oiça”.
Regina Anacleto
23 de julho de 2023 16:57
Já a minha Mãe dizia que o respeitinho é muito bonito! E lá vai um ponto de exclamação…
Gosto muito quando os alunos Erasmus escrevem as frequências ou os exames em inglês e os professores portugueses corrigem…
Duas das minhas netas fizeram um ano Erasmus na Alemanha e na Catalunha. Tiveram que escrever e fazer orais em alemão e em catalão (não foi castelhano), respetivamente.
António Manuel Seixas Sampaio Da Nóvoa
24 de julho de 2023 09:25
Muito obrigado.
Desautorizemo-nos…
Saul Gomes
23 de julho de 2023 10:16
Essa autoproclamada “ciência da informação” é cousa de grandes autoridades, acima das quais, creio, nem Deus Nosso Senhor…
Luis Torgal
23 de julho de 2023 13:17
Obrigado, Caro Amigo. Já enviei o teu texto a vários colegas, um deles, que me pedia para “submeter” um artigo numa revista de Santiago do Chile.
23 de julho de 2023 13:22
Volto a escrever para te felicitar. Apenas uma nota marginal: sei que estás a caricaturar, mas traduziria “Call for papers” por “Chamada para papéis”.
Vítor Melícias
23 de julho de 2023 17:56
Boa!
Nunca se acachape…
Peço licença para transcrever mais comentários que me foram directamente endereçados e que agradeço pelo apoio que veiculam:
Jose Pizarro
24 de julho de 2023 17:49
Muito obrigado pela partilha do seu texto, com o qual concordo inteiramente.
Ana Leal Faria
25 de julho de 2023 13:19
Vinte valores pelo teu brilhante artigo! Encheu-me a alma!
Muito e muito obrigada.
Muitos e muitos parabéns
Maria da Glória Garcia
25 de julho de 2023 16:31
Sim, é de rir (ou… chorar…) saber que instituições com séculos de cultura humanista se inclinam perante algoritmos, carapaças sem alma… e deixam de fora o essencial…
Obrigada pela partilha!
Filipe Duarte Santos
25 de julho de 2023 21:10
Obrigado pela partilha do seu interessante artigo. Estamos a caminhar para um mundo estranho em que os valores humanos são secundarizados perante o mito da tecnologia.
Bernardo Vasconcelos e Sousa
28 de julho de 2023 11:45
Muito obrigado pela partilha do seu texto. Se o “controlo de autoridade” ganhou “autoridade” pelo paralelismo com outras línguas e pela “institucionalização” biblioteconómica, já o caso dos papers e das avaliações “cegas” constitui uma mistificação a que deveríamos ter sabido resistir. Até porque muitas dessas plataformas não são de natureza científica nem académica, mas são, sim, empresas que se fazem pagar e bem…
Aceite um abraço solidário
Respondo:
Esse, o das empresas que prezam o dinheiro e não a ciência, é um dos aspectos que urge, a meu ver, cada vez mais evidenciar, para não se cair na esparrela! Amiúde há alguma delas que pega num artigo meu e me propõe que, a troco de uma quantia não despicienda (a desembolsar por mim, claro!), o meu texto vai ter maior divulgação. Coitados!… Mas há quem caia, senão eles não continuariam.