O LIVRO QUE NÃO EXPLODIU

Tinha muita vontade de lhe dedicar um livro. Há personagens reais por quem me apaixono e a quem acho um dever dispensar algum tempo.

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Um autor de prestígio como Tore Frängsmyr, falecido em 2017, Prof. de História da Ciência na Universidade de Uppsala, director da Real Academia das Ciências e editor do volume anual da Fundação Nobel, garantia que a maior parte daquilo que se escrevia sobre Alfred, era fantasioso.

A vida amorosa era inexistente, a vida pessoal pouco interessante. Nobel não passava de um indivíduo que se classificava a si mesmo como um misantropo amigo de dar, um superidealista que digeria mais filosofia do que comida.

O homem que conhecemos mal, mas admiramos tanto, gostava de Literatura, deixava até alguns trabalhos ficcionais e poéticos a que os biógrafos não davam grande importância. Mas acima de tudo tinha um fascínio por química, como se pode perceber pelos laboratórios que espalhava por todas as casas que detinha. Até na Villa Nobel, antes Villa Patrone no Corso Cavalloni em Sanremo, existe um espaço dedicado a ensaios.

laboratório de Alfred Nobel no Museu Nobel em Björkborn

Experimentava também um prazer especial em dissertar sobre a concepção de Deus. Perguntava-se muitas vezes, por que invocavam tanto as pessoas uma entidade divina: seria por medo, como sugeria Aristóteles, ou por acharem que, escudados por um poder superior, podiam derrubar inimigos pouco inteligentes, na linha do pensamento de Voltaire?

Pela sua rara curiosidade intelectual e pendor científico, era uma daquelas figuras que me intrigavam tanto, que um dia teria de escrever sobre ela, neste caso ele. Afinal, todos lhe reconhecíamos um mérito indiscutível: poucos homens de fortuna tinham contribuído tanto, para divulgar talentos de todo o mundo.

Assim, ou de um modo que me parecia bem estruturado, mas acabava por derivar, nascia o livro Desculpe Sr. Nobel, publicado em Julho de 2014. Chegava a ser classificado por uma Asssociação Internacional de Artistas e Escritores como o “melhor livro de biografia de Portugal” três anos depois, mas como não era, nem é afinal uma biografia, nunca exibi o diploma aqui guardado.

Gosto de escrever ficção suportada por uma base factual que possa ser trabalhada nas partes omissas. E essa base, neste caso, reduzia-se à vida de Nobel como inventor, às experiências no domínio do armamento bélico, da borracha sintética, mas sobretudo à transformação do que inicialmente era a piroglicerina (depois nitroglicerina descoberta por Ascanio Sobrero) em dinamite.

O aperfeiçoamento desse invento do químico italiano, era a base da fortuna e do reconhecimento mundial dos Nobel e depois de Alfred, o valioso património viria a ser o suporte da Instituição dos prémios mais famosos do mundo.

Remetendo tudo isto para a figura do grande inventor sueco, eu teria de converter as cidades onde ele vivera em centros nevrálgicos do romance e acrescentar os outros ingredientes. Não podia perder de vista que a Literatura se ocupava da reflexão sobre a vida, do questionamento do mundo, da actuação das pessoas que criam por amor à Ciência, e que depois se vendem por lucros fabulosos, ou que perdem o controlo dos inventos de que outros se apropriam para destruir.

Tinha de ter a noção de que havia problemas intemporais, como outras lutas não menos condenáveis, de grupos, de empresas, de instituições, pela promoção desonesta e coerciva do valor individual, abafando personalidades brilhantes, para elevar medíocres ao estatuto de génios. Se o mundo revelava e revela retrocessos, quero crer que a esses equívocos serão devidos, atrasando a evolução.

Estávamos no final de um ano muito atrás, 2006, quando eu lia mais contestações à atribuição do Nobel de Literatura, então atribuído ao escritor turco Ohran Pamuk. E começava a coligir material recolhido, a fazer mais diligências de pesquisa, confirmando o que escrevera Frängsmyr: pouco havia sobre vida tão pacata, parte dela concentrada na correspondência com uma antiga secretária que viria a tornar-se condessa van Suttner. Era uma pacifista empenhada que terá feito germinar, na cabeça do seu antigo empregador e amigo, a ideia da criação de um Nobel da Paz.

Só a vontade de compor o livro parecia resistir ao vazio da informação. Mas o carácter caprichoso da escrita pode alterar o rumo traçado pelo autor. E a vida de Nobel ficava apagada em favor de personagens ficcionais de sentimentos exacerbados, numa trama em clima de atribuição dos prémios.

Denso como um policial, com aparente e intencional indefinição das personagens, é um dos livros de que mais gosto.  Agrada-me a montagem não linear, o jogo para descobrir os culpados no meio da urdidura. Há crime, sim, há ódios e invejas mesquinhas. Talvez por isso, e sem  demérito para o livro e para o trabalho que o envolveu, tenha vendido pouco. Não há tempo a perder  para descobrir o essencial. E só isso. Fraca razão para ser o livro com menos sucesso junto do público, que ironia.

A história, agora dizem estória, vinca a ideia de que tanto se ama como se odeia, numa alternância que pode ser quase diária e sem grandes considerações. Atropelar ou matar para se obter um privilégio, quase se tornou banal. Mas como nem só de rancores vive o homem, há lembranças gratas enaltecidas, valorização dos momentos bons da vida, amizades que ficam ou se fazem de novo. Focos de luz no negrume das intempéries.

E muita esperança em recomeços que possam perpetuar a História da Humanidade numa cadência sem convulsões.

Prémio Nobel da Paz em 2001, atribuído à Organização das Nações Unidas

2 COMENTÁRIOS

  1. Um belo livro que li e achei fantástico descodificar.
    Facil não é mas também não é um livro qualquer. Tenho os livros quase todos desta autora e são especiais.
    Aconselho a procurarem no final o nome dos personagens. Depois é ler. Mas passei por aqui por causa de um livro que ainda não tenho é sobre o qual vi uma crónica.

  2. Gostei muito. Devo dizer que o recebi da própria Autora como presente, juntamente com outros que fez o favor de me oferecer, generosa como só ela.

    Era o segundo livro e o primeiro de prosa que li de Helena Ventura Pereira. E logo ali percebi e disse para mim mesma: Aqui tens alimento de alma. Se te esforçares, muito tens a aprender. E assim tem sido, com todos os livros da Autora.

    Este com o adicional de ter mistério envolvido. Como sempre, que pena se sente quando se chega ao fim!

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