Têm os brasões – os da Nobreza e os das vilas e cidades – significados mui específicos. Aliás, desde há largas décadas que a proposta de brasão deve ser apresentada à Secção de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, a fim de obter parecer favorável. Cumpre não haver coincidência com outros brasões preexistentes e importa, de modo especial, que os motivos sugeridos se adequem às características, sobretudo históricas, da terra ou do ramo genealógico que faz o requerimento. Uma análise, diga.-se desde já, nem sempre fácil de fazer e, sobretudo, nem sempre fácil de aceitar, quando a Comissão de análise apresentar parecer menos favorável.
Justifica-se, pois, que – através do estudo do seu brasão – se procure saber das origens da terra que o ostenta.
Depois de muito se haver debruçado sobre a história e a fisionomia (ao longo dos séculos) da sua cidade de Coimbra, quis o Doutor Jorge de Alarcão partilhar, em livro, o que, ao longo de várias décadas (não duvido!), foi acareando para o basto recheado processo que ora nos apresenta: O Brasão de Coimbra e as Origens da Cidade (Coimbra, 2023, edição de autor, 64 páginas, com arte gráfica de José Luís Madeira).
E também não tenho dúvidas de que a primeira reacção de quem se dispuser a ler é uma exclamação: como é possível haver tanto para dizer, tantas interrogações a pôr, tanto material a ter em conta!…
É que, ao longo dos séculos – e Coimbra tem longos séculos de vida!… –, houve pormenores que mudaram e importa saber porquê. Por outro lado, há toda uma panóplia de documentação a miudamente observar para daí poderem tirar-se ilações, uma vez que o brasão também figura, por exemplo, nos selos que autenticam a documentação oficial.
Depois, há aquela velha discussão: o nome veio de Conimbriga. Há ainda livros, sobretudo estrangeiros que confundem esta cidade romana com Coimbra, cujo nome romano foi Aeminium. Mas como é que se processou essa mudança? Lembra Jorge de Alarcão o que se passou com a diocese da Guarda, onde, a princípio, os bispos se designavam Egitanienses, porque fora Idanha-a-Velha antiga diocese sueva e eles dela se consideravam herdeiros (p. 44). Poder-se-ia ter passado o mesmo aqui: o bispo quis chamar-se ‘de Coimbra’ para ser considerado herdeiro da romana Conimbriga, seria «mais honroso manter a antiga titulatura» (ibidem), ainda que Conimbriga estivesse situada a cerca de duas dezenas de quilómetros! E, nesse caso, o topónimo Condeixa donde vem? De origem árabe poderá ser, pois que «um cronista árabe do século XI aludiu ao ataque de Almançor a Qundaýixa» (p. 47).
Pelo seu vetusto estatuto, Coimbra foi, pois, referida nas mais diversas obras e a curiosidade dos escritores antigos não deixou passar em branco esse bem curioso brasão, explicitando o seu significado.
Veja-se este testemunho: na Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra (!), da autoria de Gil Vicente, comédia encenada no paço de Santa Clara, em 1527, a personagem Colimena explica:
Eu assentei aqui esta cidade;
E eu sou Coimbra; e vem de Colimena.
Tomei por devisa aqueste Liam
E aquesta Serpem por que fui livrada;
E o calez do meio he cousa errada
Porque há de ser torre com hữa prisam (p. 14).
De facto, há, no brasão, a representação de uma mulher (amiúde, coroada); dos lados, um leão e uma serpente (que haviam matado o raptor de Colimena); e, em baixo, um cálice, que, nesta voz, Colimena diz que não tem razão de ser, porque era uma torre que ali deveria estar.
Compreender-se-á, pois, que, passando a pente fino lendas e narrativas e testemunhos iconográficos, o Autor acabe por perguntar:
«Sendo mentirosas todas as histórias que nos séculos XVI e XVII se contaram sobre as origens de Coimbra, que sabemos nós, afinal e de verdade, sobre essas mesmas origens?»
Ao que não hesita a responder:
«Muito pouco ou quase nada» (p. 38).
Lamenta que, na década de 50, as obras da Cidade Universitária não tivessem sido acompanhadas por arqueólogos: «talvez se tivesse podido colher alguma informação» (p. 39). De momento, são «parcos os materiais da Idade do Ferro até agora recolhidos» (p. 40); contudo, não estava longe a feitoria fenícia de Santa Olaia (Montemor-o-Velho), datável do século VII a. C. e pelo estuário do rio Mondego de então trocas comerciais e outras tiveram que, naturalmente, ocorrer.
Os Romanos mantiveram para a cidade o seu nome pré-romano, Aeminium¸ mas ainda não foi possível determinar a que estrato linguístico tal topónimo poderia pertencer. Esse nome se manteve «pelo menos até final da época visigótica» (p. 48) e é bem provável que, ou sob domínio muçulmano (878-987) ou já no período da Reconquista (pelo século X), haja sido substituído por Conimbria ou Colímbria. Não sejam de admirar essas diferentes grafias do nome: elas resultam da transmissão oral, numa cidade, recorde-se, em que «bem podia haver diferentes pronúncias», «atendendo à diversidade étnica e linguística da população, com cristãos, mouros, moçárabes e judeus, gente do Norte e do Sul que acorrera a Coimbra» (p. 46).
Para além da já referida minuciosa dissecação que é feita pelo Doutor Jorge de Alarcão da documentação escrita, um olhar atento deu às ilustrações e aos baixos-relevos. Permita-se-me que, com a devida vénia, mostre a 1ª página do foral manuelino da cidade, datado de 1516: lá está o busto feminino (a cidade ou uma figura lendária?) a sair duma píxide, ladeada de um dragão e dum leão. Esses motivos constam também no frontispício dum livro de louvor à cidade, datado de uns anos depois, 1554.
Passeando-nos pela parte velha de Coimbra não é difícil encontrarmos, ainda hoje, na verga dalguma porta a palavra SEE, a indicar que aquela casa pagava a sua renda à Sé. Pois «no século XVI», assinala Jorge de Alarcão, «poderá ter sido corrente, em Coimbra, obrigar os moradores de prédios foreiros da Câmara a inserirem, sobre as portas de suas casas, um baixo-relevo com as armas da cidade e a legenda: Esta casa he da cydade de Cojmbra».
Um belíssimo texto que terei de reler.
Fi-lo com avidez e prazer. Por um lado levada pela curiosidade de natural de Coimbra; por outro lado, por verificar que uma personalidade como o Doutor Jorge de Alarcão, folheados manuais e arquivados tantos conhecimentos, ainda tem mais perguntas do que respostas. Talvez pela complexidade do tema e de muita informação sobre este caso particular, como adianta José d´Encarnação.
Eu também gostaria de as conhecer (as respostas). De onde vem o nome da cidade?
Gostaria que houvesse em algum lado, sem contestação, explicação fundamentada para este nome.
Os símbolos das imagens do foral poderão ajudar, pergunto na minha ignorante ansiedade? Se do vaso onde se guardavam as hóstias, ou até artigos de beleza feminina no universo da cultura clássica, emerge uma figura de mulher, talvez a mulher fosse muito respeitada na altura da origem do nome, ou certa figura de mulher. Poderia ser uma sacerdotisa, uma rainha?
Parece-me que o brasão da casa de Aragão também tinha o dragão alado, mas estamos a falar de origem mais remota do nome da cidade, não é?…
Muito grata pela partilha de matéria tão interessante.
Voltarei.