ESCREVERAM NA PEDRA COMO SE FOSSE PAPEL

Habitação do século XIX com inscrições enigmáticas.

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1703

Na frontaria de uma casa, no Beco Atrás da Igreja, povoação de Cimbres, concelho de Armamar, está uma placa de granito róseo, com pequenas áreas brancas; ostenta uma inscrição que parece ter sido pensada para ser passada para o papel.

Estranha-se, de facto, esse tipo de escrita assim, em minúsculas cursivas, gravadas numa pedra, como que a copiar o rascunho que ao canteiro foi apresentado.

A casa ostenta, sobre uma das janelas, a data de 1850, com uma cruz a meio do número e, nestoutro letreiro, houve a preocupação de imitar o enquadramento do letreiro: a inclusão num rectângulo, lateralmente enfeitado por um triângulo de cujo vértice exterior saem três volutas. A superfície inscrita tanto no caso do letreiro como no da data foi pintada de vermelho.

A mesma data, mas sem pintura, embora com idênticos ornamentos, está na verga da porta, em numeração ‘romana’: MDCCCXXXXX.

Essa identidade decorativa leva a crer que as inscrições foram feitas ao mesmo tempo, datando-se, por isso, de meados do século XIX. Só, porém, uma consulta da matriz predial nos poderá elucidar com maior segurança do que se terá realmente passado, pois, a uma primeira vista, há a impressão de ser escrita anterior a essa data. Poderia, por exemplo, ter estado na casa anterior, que foi demolida para dar lugar a esta ou se encontrava noutro lugar e o proprietário achou que ficava bonita ali. A semelhança das duas inscrições não deixa, porém, de ser sintomática e 1850 não está assim tão longe no tempo para que uma investigação não possa vir a dar resultados satisfatórios.

O imóvel pertence a Manuel João Cunha Santos Cruz, que apenas sabe que foi comprado pelos seus pais a pessoas que viviam no Brasil. Na monografia Armamar, Terra e Gente, da autoria de J. Gonçalves Monteiro, publicada pela Câmara Municipal em 1999, o letreiro não é referido. Terá passado despercebido, como amiúde acontece, ou, atendendo a que se trata de um texto deveras difícil de entender, preferiu-se ignorá-lo. Nesta tentativa em que andamos de dar a conhecer tudo o que se nos afigura fora do comum e digno de atenção, decidimos encará-lo.

E não foi acareação fácil esta, diga-se desde já. Começámos pela última linha, que se lia bem: Aqui se fes esta hobr(a). Letras de boa caligrafia, de facto, como se estivesse a escrever em papel, inclusive lançadas para a frente.

O problema surgiu quando se olhou para as linhas anteriores onde se presumia que houvesse informações complementares: porventura, uma data, a identificação da pessoa ou entidade de quem partira a iniciativa da obra e o seu objectivo.

Logo a 1ª linha nos confundiu: será C a letra inicial? om ano pareceu-nos bem, até porque se postulava uma data e a palavra ‘ano’ vinha mesmo a calhar. Sucede que, de seguida, há um traço coleante cujo significado desconhecemos, depois d, um s deitado, C maiúsculo e um r como o que se lê mesmo no final do letreiro.

A linha 2 parece começar por dois ii; depois O ou 0, um 2 ou um z. Aliciante seria ler 1102, mas não ousamos. Os não poder afigura-se-nos seguro.

Na linha 3, bra por os im LLII – seria leitura possível; de significado enigmático, todavia.

Incapazes de decifrar a ‘charada’, pedimos ajuda a colegas paleógrafos, pois que, na verdade, se tratava de uma escrita cursiva e o paleógrafo disso entende mais do que o epigrafista que lida de costume com letras maiúsculas.

Foi o Doutor Mário Barroca, bom conhecedor da epigrafia medieval e até de épocas posteriores, quem, mui gentilmente, se disponibilizou a vir em nosso auxílio (bem haja!) e, embora reconheça que a sua interpretação pode infirmar de alguma dúvida, optou por ler o seguinte:

…tom casa marcar

por as nao poder

transpor as(s)im. LLM

Aqui se fas esta hobrª

            E comentou:

«Creio que seria um lintel do portão de entrada na propriedade. A primeira palavra, pelo sentido, seria “Mandou”, mas não sei se foi isso que foi gravado. Na terceira regra creio que será uma abreviatura  – L.L.M. – talvez as iniciais do nome do proprietário. A inscrição é seguramente mais antiga que o ano de 1850».

Ou seja, não deixa de ser esta uma opção com sentido: a obra constituiria, pois, não a casa mas o acesso a ela. Mais uma prova, portanto, de que o construtor do actual imóvel trouxe a placa doutro sítio, porque, sendo assim, deveria estar sobre o portão. Veja-se, de resto, que o granito da placa não é da mesma lavra do do resto do edifício.

Mensagem decifrada a contento? Desta vez, apenas verosímil. Decerto também para fazer a vontade de quem mandou gravar e assim quis que ficasse: hão-de parar diante de mim, quererão saber o que eu lá mandei escrever, abanarão a cabeça, retomarão o caminho e ficarão mesmo sem saber ao certo porque é que eu – L. L. M. ? – quis fazer esta obra. Mais: nem sequer saberão bem que obra foi essa a que eu quis meter ombros!

Em 1850? Essa é outra parte do mistério!… Temos fes com s e não com z, temos hobra com h inicial. Podem ser reflexos de uma oralidade que não tem correspondência na correcção da grafia; mas também podem indiciar a época em que se escrevia assim. E conseguirá saber-se qual? Uma pesquisa na Internet permite verificar, por exemplo, que, num texto castelhano do século XIX, se escreveu ‘hobra’: buena hobra, mano de hobra. Pode ter sido mera coincidência. Também não será, porventura, difícil – para quem manusear bem essa documentação – encontrar passagens em que o verbo ‘fazer’ esteja grafado com s e saber quando se começou a escrever com z.

O desafio aqui fica aos linguistas.

Artigo em co-autoria com José Carlos Santos

1 COMENTÁRIO

  1. Transcrevo, com a devida vénia, o comentário
    De: Maria de Magalhães Ramalho
    27 de julho de 2023 11:48
    Analisando a estratigrafia murária desta casa salta à vista que a inscrição mais complexa foi colocada depois da sua construção observando-se, para além do tipo de pedra diferente, o recorte da pedra lateral da janela para a «embutir» naquele sítio.
    Foi pena não se ter registado o paramento da fachada antes do fechamento das juntas com cimento pois ofusca a leitura.
    Quanto às restantes inscrições também me parecem ser da época em que se ergue a habitação, a porta e as janelas têm a mesma lógica construtiva .
    Obrigada por mais este interessante caso.

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