– E então querida como foi esse aniversário?
– Muito original…
– Conta!
– Passei a noite anterior a transpirar.
– Ohhh…
– Acordei cheia de dores de garganta, de corpo, e com o telemóvel desligado…
– Tadinha…
– Desmarquei o jantar de anos, desmarquei tudo, perdi a possibilidade de ver pessoas de quem gosto muito e não estou com elas há imenso tempo.
– Ficaram zangadas?
– Zangadas, acho que não, um pouco aborrecidas talvez. Compreendo.
– E depois?
– Depois o meu telemóvel, já semi carregado, ganhou vida própria e não me deixou fazer chamadas de vídeo…
– Epá!
– Fui para a cama às nove da noite. Por magia, apareceu, assim de surpresa, a amiga de sempre, aquela que raramente vai a um aniversário, diz que não gosta de grupos, mesmo que sejam só três pessoas. Desta vez o aniversário foi ela. Único! Minis pretas para cá, gargalhadas para lá (as minhas a custo). Dentro do caos, houve um final feliz.
– Mas porque é que ficaste assim? Andaste à chuva? É que não choveu…
– A noite anterior foi uma noite de verão brutal. Fiquei horas no Mac com a ventoinha virada para mim. O clássico resfriado… A clássica nabice!
– Que aniversário…
– Mas recebi muitos telefonemas de amigos (o telemóvel autorizou chamadas “normais”) e muitos parabéns pelo Face. De resto dispenso bolos e velas, mas os parabéns, seja de que forma for, são sagrados, a melhor parte. Esses as dores de garganta não roubaram!
– E planos para este ano novo?
– Muitos.
– Uau!
– Já conseguiste mudar alguma coisa?
– Sim.
– O quê?
– O cabelo, tenho um novo corte de cabelo.
– Yap… blá blá blá, bonita, blá blá blá, mais nova e blá blá, blá vaidosa!
– Não tem tanto a ver a com a vaidade (um pouco, vá lá) mas só corto o cabelo uma vez por ano. A cabeleireira “Amy Winehouse” é maravilhosa. Corta, o cabelo cresce, o corte aguenta um ano. Até um pouco do cabelo rapei!
– Radical!
– No dia seguinte cortei o medo pela raiz e deixei crescer a força enterrada num jardim abandonado. Não a perdi, tinha-me perdido dela.
– Continuo a achar tudo muito poético. E se um destes dias eu te roubar a mala com tudo o que precisas e prezas? E no dia seguinte te enfeitiçar e levar-te a cortar o passe social com uma tesoura? Ah, e se te estatelares na calçada e ficares com uma ferida tão grande no joelho que mal possas andar? Como vais conseguir refazer-te de volta ao optimismo? Eu cá te espero! Ah ha ha ha! Venho logo a correr para te ver cair!
– Talvez. Se tanta desgraça acontecer, digna de um filme comercial decadente, não choro. Talvez parta alguma loiça! Depois, desligo o telemóvel, encomendo um menu do McDonald’s, vejo filmes com tubarões na cama e adormeço. Se for preciso, repito o ritual no dia seguinte (aí peço um menu de frango assado) mas ao terceiro salto da cama quer esteja triste ou contente. Ai o buraco da Alice no País das Maravilhas! Não quero dar de caras com a Rainha de Copas ou com o Gato das Botas. Quero usar o laçarote e os sapatinhos vermelhos da Judy Garland, quero ser a “Pretty Woman” com o sorriso rasgado da Júlia Roberts. Quero ser feliz!
– Um final feliz com um milionário! Caramba!
– Sei que não é bem assim. Como diz a Maria Bethânia numa canção, “Felicidade se encontra em momentos de descuido”. Hei-de encontrá-la, perdê-la e voltar a encontrar. Não vou morrer na praia.
– Isso passa pelos príncipes encantados, aposto…
– Estou farta de príncipes encantados, a correrem para mim a galope, como se não houvesse amanhã…
– Há?
– Não… caem todos do cavalo antes de me alcançarem…
– E que tal embarcares no Titanic?
– Credo, claro que não. Só fizeram amor uma vez e ele morreu logo a seguir.
– Desististe do amor, portanto.
– Não. Nunca hei-de desistir do amor.
– Pretendes encontrá-lo num bar…
– Também não. Pretendo encontrá-lo dentro de mim.
– Masturbação?
– É algo…higiénico e saudável, claro. Mas o que quero dizer é que pretendo colocar-me a mim em primeiro lugar, defender-me das más vibrações e das pessoas amargas. Pretendo fugir de tudo o que me faz mal. Ser o meu primeiro amor.
– Que bonito….
– É assim que vou encontrar alguém de quem gosto e poderá vir a gostar de mim. Pode ser alguém que me atropele na passadeira (só um bocadinho) e fique uma semana no meu leito do hospital. Ou então alguém que a meu lado se deslumbre com o quadro do Malhoa no Museu do Fado, alguém que não consiga tirar os olhos da minha nova mini-saia, se calhar até alguém que já conheço. Mas… mas… espera um pouco, ainda não percebi. Estou aqui a “despir-me” para ti, dizes que fazes coisas más, maldosas, nem sequer sei quem tu és, embora a tua cara me seja familiar…
– Não te lembras? Sou a tua bruxa Ataraxia. Sou os teus defeitos, as tuas fraquezas, a tua tristeza, os teus falhanços, a tua rendição à dor. Sou o teu comodismo, a tua preguiça, o teu lado melodramático, o pior que há em ti. Sou o teu lado negro. Mas… por agora… vou embora sem sequer te picar. Estás quase imune. Sei que vou voltar a ver-te… ou… talvez não. Acredita em ti e prometo que vou ficar longe. Mais longe, pelo menos… Ah, e sim, o corte de cabelo é de arrasar. Até parece que tens 51 anos!