A invenção da escrita esteve inicialmente ligada à religião, e a ela acedia apenas uma escassa minoria de privilegiados na escala social, os escribas, que dominavam os pictogramas. Essas primeiras escritas eram, digamos, “os bonecos”. Mas, ao contrário de mais acessíveis do que os desenhos simplificados, abstratos, os alfabetos, a sua descodificação era inacessível às massas. O exemplo mais eloquente desta inacessibilidade é ilustrado pela famosa Pedra de Roseta que só com 3 sistemas de escrita permitiu finalmente descodificar os hieróglifos. O dito comum, “quem não sabe ler vê os bonecos” manteve forte religiosidade, como pode deduzir-se da exuberante decoração dos templos, nos milhares de anos de analfabetismo das massas.

Nasci na segunda metade do século XX, numa aldeia beirã, no distrito de Coimbra. Aí vivi até aos 17 anos, idade com que mudei para Coimbra. Daí, após dois anos, parti para a longa caminhada profissional, percorri vilas e cidades, das Beiras ao Ribatejo, até me fixar na Marinha Grande, há 37 anos.
No início dos anos 60, quando comecei a conhecer as letras, havia 3 escolas na minha aldeia, para umas largas dezenas de miúdos.
Quatro dezenas de anos antes, na geração dos meus pais, a escola era uma raridade. A escolaridade mínima era de 2 anos, mas poucas eram as famílias que, percebendo a importância de saber ler e escrever, punham as crianças na escola, mesmo onde as havia.
Contudo, tive um avô, materno, muito à frente do seu tempo. Com duas filhas e um filho, os três frequentaram a escola, sendo a minha mãe a primeira rapariga da aldeia a ir além da escolaridade mínima e fazer a 4a classe.

Fui uma felizarda por ter este avô. Muitas mulheres e homens da minha aldeia, da geração dos meus pais, aprenderam a ler e a escrever com ele, professor até ao tutano, exceto no diploma, que nunca teve. De tudo o que devo a este avô, (que já homenageei no livro, “Volta a vida em vinte livros”), ficou-me também a vontade de ensinar. E foi assim que aos 13/14 anos me tornei também “professora” de algumas mulheres da geração da minha mãe. Já adulta, fui professora de História em escolas secundárias, quarenta e cinco anos, mas pensando, amiúde, que preferia ser professora das primeiras letras.
Das várias mulheres às quais consegui ensinar as letras para escrever o nome, recordo a minha tia Irene, hoje com 92 anos, há muito a viver no Canadá.
Tecnicamente analfabeta, isso não a impediu de ser uma passageira frequente da TAP, entre Porto e Toronto, viajando mesmo sozinha até há bem poucos anos. Admiro a sua capacidade de viver sem saber ler, ainda por cima num mundo onde mal-entende o que ouve, por ser outra a língua a que diariamente está exposta.
Esta situação, na era do audiovisual, faz jus ao dito popular “Quem não sabe ler, vê os bonecos” e à equivalente, muito citada no meio jornalístico, “uma imagem vale mais que mil palavras”.
Foi o meu filho que me fez compreender que ler é, em primeiro lugar, ver, como aliás vem nos dicionários. Tinha ele os seus 3 anos e adorava os bonecos de banda desenhada. Adormecia, muitas vezes comigo a ler-lhe as histórias dos almanaques do Patinhas. Mas não lhe bastava a voz. Mantinha-se de olhos bem abertos e insistia comigo:- “Os desenhos, mãe! Tens de ver os desenhos, não só as letras. Os desenhos é que têm piada.”
Percebo hoje o quão difícil deve ser viver sem saber ler, quando vejo na TV legendas em línguas de alfabetos não latino. “Os bonecos”, sem palavras que lhe delimitem o sentido, entram numa deriva polissémica que, ao contrário do que vulgarmente se diz, é preciso “ver para crer”, gera uma infinitude de significados que tornam as imagens incompreensíveis. “No comment” é o maior desafio interpretativo, como modelo de noticias sobre as quais não tenhamos qualquer informação para além das imagens.

Saber ler é infinitamente mais complexo do que conhecer o alfabeto, nível elementar da relação entre a fala e o código linguístico. É também muito mais do que ler mensagens do Facebook. Mas isso é tema para muitos tratados, dos quais evocou e recomendo apenas um, incomparável: “Uma História da Leitura”, de Alberto Manguel.
Os humanos habitam o planeta há mais de um milhão de anos, não são os únicos seres vivos com capacidade comunicacional, mas são os únicos que fixaram em registo escrito os códigos que designamos por línguas. E isso foi apenas há uns escassos milhares de anos.
O fogo e a roda permitiram grandes saltos na evolução humana, mas nada se compara ao que a língua escrita tornou possível. A leitura decorre naturalmente da escrita, mas o inverso não é verdadeiro. A imensa maioria de leitores nunca se tornará escritor. É certamente uma condição necessária, mas não suficiente.
Por isso sempre me indigno quando ouço desvalorizar a escola, onde a leitura e a escrita não podem deixar de ser o mais importante objetivo. E é sem surpresa que, ao consultar pela enésima vez as taxas de alfabetização no mundo, verifico que a fome e toda a miséria dos povos coincidem com as taxas de analfabetismo.
Também sem surpresa confirmo que os países com maiores taxas de analfabetismo são no continente africano. Disputam estes lugares “de topo” com alguns da Ásia. A Índia, dita a maior democracia do mundo, tem uma taxa de 25,4% de analfabetismo (dados de 2020), só superada, no distante oriente, pelo Afeganistão, Bangladesh e Nepal. É o 132º país no índice de desenvolvimento humano, num total de 191 países classificados nesta lista. Essa “grande democracia” é uma potência nuclear e faz parte dos G20. Mas a dura realidade está fora das estatísticas. Imagens fugazes da Índia, que não chegam para nos estragar o jantar, antecipam como esta democracia se tornará em breve um país inviável para muitos milhões, no qual, em pleno século XXI também milhões de mulheres e crianças fazem diariamente vários quilómetros a pé para se abastecerem de água. País mais populoso do Mundo, a Índia tem mais miseráveis do que todo o continente africano. Terras que a civilizada Europa colonizou! Não deixa de ser chocante o contraste com as taxas de alfabetização (entre os 95% e os 99%) e índice de desenvolvimento humano na China e nas duas Coreias.
Há, porém, uma diferença fundamental: na Índia todos têm direito a falar. A comer, nem tanto. Mas, convenhamos, … é sabido que não se deve falar com a boca cheia!

Para sua informação a exuberante decoração de templos – na arquitetura cristã passa-se isto – é/foi igualmente uma escrita, e muitas vezes legível. Entendível e significante. E apesar de uma certa polissemia medieval havia algumas regras, nascidas na Geometria. Seremos só nós quem conhece essa língua visual? Talvez… e talvez assim continue até que alguém queira prestar atenção ao que venho s defender. Parabéns pelo seu texto. Glória Azevedo Coutinho