O tempo branqueia tudo

Sem surpresa, vi o prémio Carlos V ser atribuído ao Secretário Geral da ONU, António Guterres. Já receberam este prémio, mais dois portugueses: Jorge Sampaio e Durão Barroso. Mas o nome do prémio, Carlos V, e o facto de ter sido entregue no Dia da Europa, suscitaram-me, a posteriori, algumas interrogações.

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Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, terminou os seus dias no mosteiro de São Jerónimo de Yuste, Espanha, território de que também foi rei, com o nome de Carlos I. Mas não só. Carlos V foi senhor dos Países Baixos, como duque de Borgonha e Arquiduque da Áustria.

Chefe da crescente casa dos Habsburgos, também chamada Casa d’Áustria (que remonta ao século XIII, foi a base do império austro-húngaro e uma das mais poderosas famílias europeias até ao séc. XX) os seus domínios incluíam territórios da Alemanha, Áustria, Itália, Espanha, Sicília e Sardenha. E foi através do impulso da sua política imperialista, que se consolidou a colonização espanhola das Américas. A extensão dos territórios e reinos que dominou, granjeou-lhe tamanho prestígio que ficou conhecido como “senhor dum império onde o sol nunca se põe”. Com apenas 19 anos era considerado o homem mais poderoso do mundo.

Domínios dos Habsburgos na época da abdicação de Carlos V
Carlos V

Foi, portanto, com perplexidade, que vi associar o prémio Carlos V ao ideal da Europa, ao ser entregue no dia em que se comemora o fim da Segunda Guerra, a vitória dos Aliados sobre o  nazi-fascismo e a declaração Schuman, um dos ideólogos desta nova Europa.

As guerras levadas a cabo por Carlos V e outros Habsburgos, ao longo de sete séculos, visaram tão só o poder, o domínio de territórios, a exploração de recursos e a pilhagem, como foi a colonização espanhola dos territórios americanos. Foram um projeto imperial distante do ideário que presidiu à progressiva construção duma Europa da paz, edificada sobre as ruínas da guerra, através de tratados longamente negociados. O poder dos Habsburgos foi forjado na ponta da espada, acrescido ainda pela herança legítima, decorrente dos cruzamentos/casamentos de que beneficiaram tantos poderosos ao longo da história. Razões de estado, dir-se-ia.

Mas eu ainda me permito acreditar que os ideais desta nova Europa, desde os fundadores às atuais instituições, estão longe das ambições dominadoras da casa dos Habsburgos. Ou será que simplesmente os processos de dominação evoluíram, sendo hoje apenas mais subtis e anónimos?!

O Banco Central Europeu não é a casa dos Habsburgos e as instituições europeias mantêm alguma aparência de democraticidade. Ou será este um pensamento ingénuo, de quem afinal não percebe nada de história?!

Cada época escreve a história com os seus valores, o que é politicamente correto no tempo e a partir do lugar em que se encontram os seus escribas. Não há outra maneira de pensar a historiografia. Adam Schaff explicou cabalmente a diferença entre res gestae (as coisas que aconteceram) e de rerum gestarum  (sobre as coisas que aconteceram, ou seja, a história) em “História e Verdade”, uma reflexão filosófica bem difícil de tragar, e Marc Ferro clarificou que “não há uma história, mas diversas versões”, em “Falsificações da História”, um eloquente e acessível ensaio escrito a partir da análise de manuais de história do ensino básico, de seis dezenas de países.

Alexandre, o Grande, tornou-se mito, mas foi, segundo fontes históricas, um guerreiro, um general, com uma ambição maior do que o mundo conhecido por ele e pelo seu exército. Os Césares triunfaram sobre os “bárbaros”, matando, chacinando, em nome de Roma, da civilização. Ainda que os imperadores mais conhecidos e reconhecidos, sejam dignos dos adjetivos da mais sórdida barbárie. Calígula, Cláudio, Nero, Diocleciano, para citar só os que de imediato me vêm à memória, chefes do mundo civilizado, rejubilavam tanto com a chacina no campo de batalha como com os espetáculos de sangue nas arenas de Roma.

Mas isso foi há dois mil anos! O tempo branqueia tudo. Alexandre tem o seu lugar garantido na galeria dos heróis míticos, os Césares estão imortalizados nos arcos de triunfo. É desses que reza a história. Por mais que os estudos pós-coloniais já contem outras histórias, a escola continuará, por muito tempo, a contar uma história balizada por reis e imperadores.

Então, porque não há-de Carlos V ser a figura tutelar de um prémio, (miserável na quantia, por sinal: 30 mil euros) associado ao ideário de Jean Monet e Robert Schuman?! Afinal passaram cinco séculos!  Quem se lembra que Carlos V, casado com a princesa portuguesa Isabel, filha do rei Manuel I, foi pai de Filipe II, e que a este Habsburgo e seus descendentes, de 1580 a 1640, nem Portugal escapou?!

2 COMENTÁRIOS

  1. Interessante! History is written by those I power and that come out winners in the battlefield or the business world because can buy power. Foi sempre assim.

  2. Oportuna reflexão de Alice Marques sobre a falaz justificação dos poderosos para alimentarem os jogos de dominação.
    Nem isso lhes retira o estatuto de heróis. Têm escravos para escreverem a versão que mais lhes convém e “o tempo branqueia tudo”.
    Um texto que em frontalidade, rigor histórico e estrutura, é simplesmente insuperável.

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