O OCEANO DA ESCRITA

Somos todos escreventes, escritores talvez nem tanto.

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A Escrita foi uma das maiores invenções da Humanidade e por ela nos encontramos vindos de origens diversas.

Queremos comunicar, mas não podemos identificar escritores entre os escreventes, só pelo facto de todos poderem exibir o símbolo de uma elite.

O escritor pertence a uma elite? Acho que sim, e a exibição do símbolo não garante o estatuto.

Talvez ninguém tenha o direito de julgar os melhores com base em critérios ditos intelectuais (o que serão?) mas há formas de julgamento ligadas à inteligência emocional, que logo tocam um sino, dentro de nós, mal lemos um  texto bem escrito. E o autor pode nem ambicionar ser escritor.

Depois há o acto de julgar por estratégias calculistas que vêm do princípio dos tempos, e servem um, vários grupos. Hoje vivemos em sociedades onde até a Política é ditada pela Economia.  Os “cérebros” que a dominam, pretendem semear a confusão de conceitos, para manter os melhores na sombra. Só lhes importa que o “bem cultural” produzido, venda muito.

Digo melhores, porque eles mesmos, os “cérebros”, nos vão dando indicações através da selecção. O que é imprestável, não incomoda o sistema, pode servi-lo sem atritos.

Começamos a perceber que melhores, neste contexto da Literatura, tem muito a ver com independência.

“A Escrita é para mim como o ar que respiro”, ouvimos dizer tantas vezes, mas poucos assumem que ela pode ser uma necessidade de sobrevivência, decorrente de uma porta que se abriu. E ambas as categorias de escreventes serão capazes de fazer amor com ela, depois de se apaixonarem por paisagens interiores de uma frase, de um texto, ou de um livro.

Mas há sempre uma fractura entre os que nascem predispostos ao êxito imediato a qualquer preço, e os que vão escrevendo à medida das emoções, sem preocupação de se ajustarem a calendários especiais.

Escritor é o que sabe escrever cumprindo as regras gramaticais? Não exactamente. Precisa de conhecê-las, comparar opiniões de nomes celebrizados pelo respeito, mas quando muito caminho se percorre na escrita, as regras podem ser subvertidas por conta da elegância, ou da originalidade.

Tem de saber técnicas específicas para construir frases escorreitas? Talvez algumas. Afinal a vida obedece a regras e hierarquias. Sempre discutíveis, é certo, mas todos temos de alienar a vontade pessoal, a favor de uma serenidade colectiva, ou neste caso de certo rigor formal que não dispense harmonia.

Tem de ler outros autores para poder ter nota positiva na avaliação?

Parece-me essencial conhecer nomes, modos, discursos, se quiser situar-se em algum domínio estilístico e construir a sua comunidade de leitores, o que pressupõe ser avaliado. E aqui para nós, todos querem. Não publicam em livro, não partilham textos nas redes sociais, só para dar voz às vozes interiores. Esperam sempre um retorno positivo.

Vamos considerar a classe que mais importa para a Literatura: a dos escritores descomprometidos, que se assumem como trabalhadores da escrita, depois de ganharem coragem para sair do labirinto do constrangimento. É preciso coragem para a exposição pública.

Os mais livres só podem ser os mais criativos, os tais que, gostando de opiniões de empatia, leram muito, usaram o método comparativo, acabaram por fazer o seu caminho. Fabulosos escritores ditos “rebeldes”, escrevem aquilo que querem, sem esperar loas das agremiações. Às vezes afrontando-as com coragem.

Nem esse caminho é livre de obstáculos. Os lobbies, grupos de pressão e bandos que produzem para a engrenagem do sistema, estão unidos na tarefa de nivelar por baixo. Não  desistem do labor de lhes tapar a boca, porque silenciar é o mais activo método de censura.

Bem acompanhados por especialistas em marketing editorial, munidos do tão falado “capital de relações sociais” na esfera dos poderes, alcançam mais depressa a fama, as vendas, os prémios, importantes porque dão projecção.

O poder que os protege, pode dominar os meios que lhes darão voz, mas jamais lhes poderá fornecer a qualidade literária. E só lamento que as associações culturais não defendam ferozmente os seus membros destas avaliações confusas, porque são sustentadas por eles, nem se organizem de forma a negociar com editoras a publicação de obras meritórias.

Já senti na pele a dificuldade de ver os livros chegarem ao conhecimento do público, mas há muitos anos que tenho editora e o privilégio de ver os meus livros no mercado, sem sobressalto.

Deixo estas palavras em nome dos que ainda produzem textos por amor à Escrita e à Verdade e que talvez morram sem ninguém lhes dar a mão.

As distinções póstumas só servem para apaziguar a consciência de quem as atribui, nunca fazem justiça ao talento de quem parte.

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente reflexão. Para além de colocar o dedo na ferida, no que respeita à importante questão da ‘visibilidade’ dos autores perante o grande público, quase sempre definida não pelo mérito e qualidade literária, mas por interesses de vária ordem, ou mesmo, compadrios, Mª Helena Ventura estabelece, com clarividência e brilho, a distinção entre o mero escrevente e o verdadeiro escritor. Para ser (bom) escritor, não basta dominar a gramática e o léxico; são necessários outros importantes ingredientes, predominantemente relacionados com o ‘interior’, com o emocional, e também com a elegância e a originalidade.

  2. Que texto este, que denúncia corajosa a que Helena Ventura Pereira aqui faz! É como diz, vivemos tristes tempos em que a Economia tudo subverte, é como economista desencantada que o digo. Por mim, já me dei bem conta daquela subversão em outros domínios, como o da chamada publicação científica: nesse domínio, em Economia, os artigos e livros mais citados e referidos são os que papagueiam o pensamento dominante, mesmo que não acrescentem nada ao conhecimento constituído e muito menos contribuam para o bem estar social.
    A esses não faltam editores e, mais, editores bem indexados nos repertórios de referência para a academia.
    Que assim suceda também no domínio literário é uma lástima. Porque se no domínio que antes referi só se afoitam os interessados, aqui é toda uma população e o seu acesso ao conhecimento e à cultura que assim se vêm condenados à mediocridade. E, pelo que Helena Ventura Pereira também refere, é igualmente de lamentar que as associações de representação dos escritores os não defendam face ao oportunismo e à mediocridade dos arrivistas. É mais fácil promover, ou censurar, do que criticar construtivamente, demora menos tempo e vende melhor.
    Há que contrariá-lo, custe o que custar.

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