Ouvi muitos cantores de intervenção que por aqui passaram e aprendi nesta praça a amar as cantigas de Abril, assisti à progressiva substituição por novas gerações, dos cantores e do público. Ouvi discursos dos políticos, ditos à varanda da câmara municipal, vozes emocionadas, evocações revolucionárias e prenhes de esperança, que se foram transmutando em discursos formais, chatos, que já ninguém ouvia.
Com colegas habituais na praça, na noite de 24 para 25 de Abril, andei com um cravo vermelho na mão, juntas ensinamos os nossos amigos holandeses, os Hans e os Jans a cantar “Grândola, vila morena, terra da fraternidade”, fazendo-os acreditar que aqui “O povo é quem mais ordena”!
Num ano em que estivemos ausentes da praça por estarmos num intercâmbio de alunos da escola Calazans Duarte com alunos da escola Piet Mondrian, fomos recebidos na câmara da cidade holandesa de Oss, onde reproduzimos o modelo, discurso e cantigas, festejando Abril, porque Abril é e continuará a ser uma festa. Enquanto houver memórias vivas.
A tradição revolucionária da cidade vidreira, que remonta ao 18 de Janeiro de 1934, e as sucessivas vitórias do PCP /CDU na maioria dos actos eleitorais até finais do século XX, tornou-a um ícone do comunismo. Jornalistas, não só dos media locais e regionais, mas até nacionais, acorriam à capital do vidro, na hora de contar os votos, num misto de euforia e expectativa, para noticiarem se resistia ou caía, este baluarte do comunismo.
Um dia caiu. E houve quem sentisse essa perda do Partido Comunista como a queda do Muro de Berlim.
A Capital do Vidro foi perdendo os seus vidreiros, os fornos arrefecendo, as fábricas fechando, os sítios icónicos que rodeiam a Praça Stephens, transformando-se em lugares de preservar a memória – museu, biblioteca, escola, casa da cultura.
As bicicletas foram substituídas por carros, dos mais modestos aos topo de gama, a cidade cresceu, demasiados anos sem plano diretor municipal, originando caos e mau gosto urbanístico, onde coexistem ainda ruínas de velhas fábricas de vidro doméstico com as gigantes da garrafaria, bairros sociais com vivendas em banda. Zonas industriais nasceram nas periferias, os moldes para plásticos substituíram os vidros, os corpos suados do calor dos fornos, dos vidreiros soprando a cana, são agora corpos bem vestidos, refrescado pelo ar condicionado, que vão sendo, cada vez mais, substituídos por máquinas, que trabalham dia e noite, sem parar, não fazem greves e nada reivindicam. De capital do vidro, a Marinha Grande passou a capital do molde, a indústria disputando mercados europeus, americanos e tentando até penetrar na China. “Na Marinha Grande, quem não sopra já soprou” deixou de fazer sentido. “A soprar se vai ao longe”, a revista encenada por Norberto Barroca, nos anos 90 do século passado, persiste apenas na memória de poucos, alguns deles artistas amadores, teatralizando as suas próprias vidas ou de familiares.
Nesta madrugada de Abril não pude estar presente na praça.
Revisitei-a na minha memória, nas memórias que aqui partilho. Ainda houve fogo de artifício, cravos vermelhos nas mãos, discursos na varanda da câmara municipal, um palco montado na praça e um cantor revolucionário. Porque é preciso continuar a cantar:
A PAZ O PÃO HABITAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO SÓ HÁ LIBERDADE A SÉRIO QUANDO HOUVER LIBERDADE DE MUDAR E DECIDIR QUANDO PERTENCER AO POVO O QUE O POVO PRODUZIR.
Maravilha, Alice!
Maravilha, a descrição, entenda-se; não o que nela se narra, espelho, aliás, do que por i se repete sem sinal algum de vontade para retroceder. E é pena!
É, porém, como recordas: só pode parar-se quando pertencer ao povo o que o Povo produzir!
Abraço, de cravo vermelho na lapela!