O nº 5 da Rua do Outeiro, na povoação de Vide, freguesia de Vila da Rua, concelho de Moimenta da Beira, identifica majestosa mansão de pedra.

Dá-lhe acesso não menos majestoso portão, encimado por amplo lintel que ostenta mui misteriosa inscrição em latim.

Quão misteriosa informação!
Já veremos do mistério escondido no letreiro, porque, antes, outro mistério há a desvendar.
É que o erudito Monsenhor António Bento da Guia, na pág. 203 da 3ª edição do seu livro As Vinte Freguesias de Moimenta da Beira (Viseu, Éden Gráfico, 2001), escreveu o seguinte:
«[…] encontramos Vide, hoje pequena aldeia que foi berço de nobreza e fé; aqui foi a primeira escola da Rua e residência do pároco até há poucos anos; lá encontramos vestígios do domínio romano, e também um portão nostalgicamente perdido da sua função e que serviu de entrada para a Capela da Universidade, como consta do letreiro».
À falta, aí, de outro portão com letreiro, pensamos que seja este o que Bento da Guia refere, até porque, de facto, as palavras ‘universidade’ e ‘conimbricense’ estão lá e isso poderia ter induzido monsenhor a atribuir-lhe tal honrosa função, porventura fazendo-se eco dalguma tradição oral que pela terra constasse.
Não lográmos saber, porém – pelas imagens compulsadas e pelas consultas feitas a quem da evolução arquitectónica do Paço das Escolas se ocupou – que portão desse jeito tivesse, um dia, estado ali, no coração da Universidade de Coimbra. Por outro lado, o letreiro nada conta a tal respeito.
O que diz o letreiro
Em latim, pleno de siglas, nexos e abreviaturas, a inscrição reza assim:

GLORIA MVNDI EST VANITAS VANITATV[M …] AN(no) MDCIIC RENOVATVM A CARVLO BOT(elho) OZ(orio) IVR(is) CAN(onici) TECTV PROFESSORE HIC DEM VIXERE PARENTES ALIOS EORVM ETIAM DECORATVS AB VNIVERSITATE CONIMBRIC(ensi)
Abre o texto com a muito conhecida frase do Eclesiastes, segundo a qual a glória do mundo é a vaidade das vaidades. Ou seja: a intenção da sua inclusão é a de mostrar desapego dos bens materiais, das honrarias, por não passarem de coisas supérfluas. Um começo que, atendendo ao que vem a seguir, constitui – ou pretende constituir – um sinal de desprendimento em relação aos bens materiais, de que a mansão poderia ser considerada testemunho.
Explicita-se, depois, o que aconteceu:
«Restaurado, no ano de 1698, por Carlos Botelho Osório, professor formado em Direito Canónico, para aqui também viverem outros parentes deles. Também condecorado pela Universidade de Coimbra».
Dir-se-á, desde logo, que esta é uma tradução mais ao sentido do que literal, uma vez que esta, a tradução literal, tendo em conta os anómalos casos latinos, se afigura deveras estranha.
Parece, no entanto, claro o seguinte:
– Carlos Botelho Osório formou-se em Direito Canónico e poderá ter sido louvado ou homenageado pela Universidade de Coimbra;
– no ano de 1698, por sua iniciativa se terá restaurado esta mansão, a fim de que nelas vivessem os seus parentes e respectiva descendência.
A fraseologia latina não obedece, porém, aos cânones estabelecidos e à concordância normal, donde pode deduzir-se que não terá sido Carlos Botelho Osório quem mandou gravar o letreiro, mas sim, mui provavelmente, os seus familiares, inclusive para garantirem a posse do imóvel.
Será interessante, para esse efeito, proceder-se a uma pesquisa nas matrizes prediais, susceptíveis de nos proporcionarem, a esse propósito, alguns esclarecimentos.
E acrescente-se que se nos afigura serem posteriores os signos (indecifrados) que estão no final da linha 1; e que, no fim da inscrição, o indefinível signo ali patente pode ser apenas a indicação de que o texto acabou.

Diga-se, ainda, que, tendo falado com os atuais proprietários, Manuel e Marina Podence (ausentes no estrangeiro), a quem agradecemos a permissão do estudo, assim como com os anteriores, que também haviam comprado a casa, todos nos referiram não terem conhecimento de alguém com esse nome de Carlos Botelho Osório. Quem foi, então, o senhor?
Nós, porém, tivemos oportunidade de saber algo mais acerca do personagem em questão, por haver sobre ele, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, uma diligência de habilitação: o manuscrito, com o código de referência PT/TT/TSO-CG/A/008-002/1093 (lançado a f. 30 v.), datado de Lisboa, a 14 de Março de 1704, que o doutor Saul Gomes teve a gentileza (que muito agradecemos) de no-lo ler.
Aí, Carlos Botelho Osório identifica-se como solteiro, «beneficiado», natural de Vide, concelho de Caria, freguesia da Rua, bispado de Lamego, «filho legítimo de Manuel Botelho de Afonseca e de sua mulher, Domingas d’Aguiar, naturais do dito lugar de Vide; neto, pela parte paterna, de Álvaro Pires, do dito lugar, e de Violante de Barros, da dita Vila da Rua; neto, pela parte materna, de Francisco Antunes e de sua mulher, Gracia de Paiva, esta do dito lugar de Vide e aquele do lugar da Faya, freguesia de S. Martinho do mesmo bispado».
E que consta nesse requerimento?
Declara o ‘suplicante’ que «está habilitado para os lugares da justiça pelo Desembargo do Paço e se acha com os requisitos de servir ao Santo Ofício no cargo de familiar, e na vila donde o suplicante é, não há familiar algum, a qual tem de termo vinte e dois lugares, e só em todo ele há um familiar».
Atendendo a essas mui favoráveis circunstâncias, considera que está em condições de pedir «a V. Ilustríssima seja servido admitir o suplicante ao dito cargo precedendo as informações necessárias».
Mais se solicita: que «os inquisidores de Coimbra informem com o seu parecer».
Em suma:
Tendo-se matriculado a 1 de Outubro de 1687, na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra – como consta dos registos dessa Universidade – Carlos Botelho Osório aí se terá formado e, mui provavelmente, em Coimbra terá exercido funções, uma vez que, no citado requerimento, se anota que iria competir aos inquisidores de Coimbra emitirem parecer acerca da sua petição para integrar o corpo dos juízes do Santo Ofício.
Regressado à sua terra natal, decerto quis restaurar a casa de família e o letreiro isso mesmo documenta, embora nos fique em dúvida o significado daquela palavra ‘decoratus’: terá a Universidade de Coimbra tido alguma intervenção no alindamento dessas obras ou foi o canónico agraciado com alguma benesse?
Em todo o caso, um aspecto se deve salientar: merece Vide diligenciar no sentido de reabilitar a memória de um dos seus ilustres filhos!
Artigo em co-autoria com José Carlos Santos
Estimado Professor
Muito gostei de ler o seu texto!!!
Parecia um policial e tive pena quando acabou …
Por acaso reparou na cantaria do lado direito? Tem umas interessantes siglas, duas cruzes que, eventualmente, até se poderão relacionar com a história pois não me parecem siglas de canteiro, mas propositadamente feitas para serem vistas na entrada.
Lídia Fernandes
Outro texto muito apelativo e misterioso.
A frase do Eclesisastes, esse pregador poético do Velho Testamento, de questionável identidade, mas de claro discurso, não é confusa, estranho é ela não condizer com a sumptuosidade da mansão (como o portão metálico e a grade que devem ser recentes). O portal e o lintel sim, são fantásticos.
Bento da Guia diz que era morada de padres. Ou muito bem posicionados, ou não eram padres… E lá está o restauro do século XVII por Botelho Osório, para ele e para a família, formado em Direito Canónico em Coimbra e simpatizante da Inquisição. Os Inquisidores da cidade onde se formara podiam até abonar as suas qualidades…E seriam capazes de tirar a uns, para distribuírem benesses entre si…
Ficaram-me algumas dúvidas que só o autor deste texto poderá esclarecer, mas deixo apenas uma: quando ele faz o restauro para si e para a descendência, sendo um homem solteiro (e só com um familiar numa área considerável) pensaria já em casar?
É que já vi por aí nomes que sugerem a mesma linhagem, talvez herdeiros…
Muito grata por esta habilidade em despertar a vontade de querermos saber mais, tudo, sobre essa casa linda a pedir um vaso imenso, tipo ânfora deitada, cheia de gerânios. Um detalhe prosaico num tema de tanta elevação, bem sei, mas estava mesmo a pedi-lo para quebrar a austeridade …
Bem hajas, Helena, pelas oportunas reflexões. E respondo:
– o que monsenhor afirma não é em relação à casa, mas sim à aldeia, onde teve residência o pároco; nada se sabe, por enquanto, da história da casa, além do que vem no letreiro e dos proprietários mais chegados;
– quanto ao Carlos Botelho Osório, ele era solteiro em 1704; tendo-se matriculado na Universidade em 1687, vamos pensar que com uma idade à volta dos 20 anos, o pedido para ser familiar do Santo Ofício foi feito aí pelos 37 anos, e pensou em fazer obras na mansão aí pelos 50;
– a palavra ‘familiar’ não tem o sentido de ‘pessoa da família’: era um ‘oficial’ do Santo Ofício; por isso, ele afirma que não há em Vide ninguém do Santo Ofício e apenas um no termo de vinte e dois lugares! Eram precisos mais e ele candidata-se! Não encontrámos informação se o pedido foi aceite.
Muito grata José d´Encarnação, por todas estas explicações adicionais.
Julguei ter lido que ele mandara restaurar para lá viverem os parentes (lá está, podiam ser afastados) e respectiva descendência. Mas o texto é tão interessante e tem tanta informação, que só me fará bem ler novamente.
Acaba o Doutor Saul Gomes de me elucidar: «O “decoratus” usa-se no formulário dos diplomas dos graus que a Universidade confere, entendo-o como equivalente a formado».
Fica assim mais bem compreendido o significado do letreiro!
Bem haja!
Teve o Doutor Azevedo e Silva a gentileza, que agradeço, de chamar a atenção para o seguinte: «Seja-me permitida a seguinte observação. No final do letreiro, com espaço destacado de CONIMBRICI, estão as maiúsculas F e T. Parece-me lógico interpretarem-se como sendo as iniciais do nome do artífice (artista) que fez a gravação epigráfica do letreiro».
A Doutora Maria Helena da Cruz Coelho teve este comentário, que agradeço:
«Pareces um investigador policial!…
E não é isso a História?».