A voz, em sentido literal, foi o meu instrumento de trabalho durante décadas. Professora de História, iniciei esta profissão um ano depois da Revolução de Abril, o acontecimento que tornou possível que todos os portugueses e todas as portuguesas passassem a ter voz.
Ser professora, há meio século, ainda era quase exclusivamente usar a voz. Para além de um direito, neste lugar de enunciação, a voz era (e é) um poder. Os manuais escolares eram parcos em imagens, aulas com projeção de diapositivos um acontecimento raro, muito esperado e aplaudido pelos alunos, mas que dava imenso trabalho a preparar. Havendo apenas um ou dois projetores em cada escola, era preciso ter os diapositivos e pensar essa aula com antecedência, para requisitar o aparelho. O retroprojetor de acetatos era o meio pedagógico recorrente, para esquemas, tópicos e mapas, mas cuja utilização estava também sempre dependente de prévia requisição O quadro negro e o giz branco (giz de diversas cores… um luxo!) eram o recurso pedagógico diário, do início ao fim da aula.
Mas nenhum destes meios substituía a voz. O ensino precisava da voz, a voz do professor certificava o seu discurso como verdade, era poder.
O meu crescimento profissional passou pela consciência de que ter voz era também escrever e ser lida. Para isso, muito contribuiu a minha colaboração com a imprensa local, a partir de meados dos anos oitenta, que se tornou regular nas décadas seguintes.
No virar para o século XXI, tinha já adquirido a plena compreensão de que ter voz, sendo um direito humano, não o era em todo o mundo e mesmo nos países democráticos, muitas vozes se auto silenciavam. Vozes de mulheres, caladas pelo medo, pela vergonha, ou simplesmente porque assim tinham sido educadas. Vozes de mulheres e de homens com trabalhos esgotantes e salários miseráveis, que aprenderam e continuam a aprender a força do número, nas manifestações, nas marchas, nos protestos, nas lutas ainda e sempre necessárias para tornar os direitos realidades vividas e não simplesmente textos escritos nos documentos fundacionais.
Enquanto nos bancos da academia me formava como feminista, acreditei que “aquelas que permanecem em silêncio falam eloquentemente”. Passaram décadas e hoje, embora ainda as compreenda, acho menos credível a eloquência do silêncio, tendo em conta as inúmeras formas de tornar audíveis essas vozes que outrora não tinham meios de se fazer ouvir e por isso emudeciam. Excluo evidentemente os países com regimes políticos totalitários, autocráticos, onde um simples murmúrio pode significar pôr a vida em risco. Onde o silêncio é necessário, legítimo, prudente, e a voz pode ser um ato de heroísmo suicida.
Trabalhar uma década com alunos adultos, cujo principal objetivo era dar voz às suas memórias, aprendizagens, competência, saberes, escrevendo a sua história, foi também decisivo para mim e para centenas de homens e mulheres, que venceram o medo e passaram a estar seguros/seguras de que tinham uma história, tinham uma língua, tinham voz e sabiam usá-la.
Um contratempo, sobejamente divulgado entre todos os que conheceram a minha voz, fez com que literalmente a tivesse perdido. Lentamente, ela voltou, mas quase quatro anos depois, ainda ameaça todos os dias deixar-me muda.
Moldada nas lutas da minha geração, não podendo calar-me, tenho treinado o meu dedo médio direito para ser a minha voz. Um livro de memórias evocadas a partir de obras de literatura, “Volta à vida em vinte livros”, foi a minha voz, através do mesmo dedo corajoso com que escrevo as crónicas desta coluna.
Acordo todas as manhãs ansiosa: terei perna e braço, para apoiar-me, pôr-me de pé e dar uns passos? Terei mão para pegar na colher…? Terei voz? Repito, vezes sem conta, exercícios recomendados pela minha Terapeuta da Fala, Nádia Marques (que virá a ser citada como Marques), também ela neste momento à beira dum ataque de ansiedade, com medo que a voz lhe falte numa situação em que precisará dela, clara e segura para uma comunicação na Universidade de Aveiro.
Depois, soletrando palavras, invento conversas breves com interlocutores imaginários, até ao momento da verdade: ” Bom dia, companheiro, hoje estou melhor (ou pior), quero sentar-me no cadeirão”.
Cumprido o ritual de testar a voz, e já sentada no cadeirão, passo ao ritual do “meu dedo, minha voz”. Umas vezes com lágrimas, outras com sorrisos, o meu dedo médio direito, apesar de cada vez menos sensível, vai cumprindo o seu papel, letra a letra, no pequeno ecrã do telemóvel. Esse e o de virar as páginas dos livros, que continuam a ser meus fiéis companheiros.
Sem voz perceptível, aprendi a viver com o meu silêncio. Mas não no silêncio. Os canais de notícias fazem-me companhia até ao aborrecimento, enquanto espero que a agenda mediática mude. Todas as notícias são comentadas permanente e pertinentemente pelo meu companheiro: “Mas que raio de notícia é esta? Qual é o valor informativo desta notícia? E a jornalista não tem perguntas importantes para fazer? É isto que aprendem na universidade? Não sabem ou não podem fazer as perguntas que importa?” Falta-me a voz para argumentar com ele, ou melhor, quase sempre para concordar com ele!
Ele que ama o silêncio, de que precisa para ouvir cada nota tocada nas teclas do piano, faz zapping até ao canal Mezzo, deixa-me com o som duma orquestra ou dum músico a solo e retira-se para a sala do piano. Para, durante horas, treinar, pela enésima vez, uma peça musical que há-de tocar em público daqui a uns meses, acompanhando uma aluna brilhante, rara sobrevivente desta escola em que vale tudo o mesmo, em que o que importa é que os alunos se divirtam.
Posso dispensar as pernas e contar com a cadeira de rodas ou o apoio do meu companheiro, restringir o uso dos braços ao mínimo da funcionalidade possível. Mas não posso perder a voz. Preciso de conservar este direito. Ser a voz da minha memória, da alegria de estar viva, da partilha sobre o que ainda consigo pensar sobre o mundo. Ser a voz capaz de enunciar um discurso crítico sobre a realidade construída pelos media.