NÃO HÁ PACHORRA PARA O POLITICAMENTE CORRETO

Notícias vindas a público há umas semanas, sobre a intenção editorial de reescrever os livros de Enid Blyton e de Agatha Christie, por as versões originais veicularem conceitos politicamente incorrectos, são de bradar aos céus. Tanto, que hesitei entre considerá-las fake news ou indignar-me perante o absurdo dos argumentos evocados.

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E que dizer do episódio insólito ocorrido numa escola básica no estado norte-americano da Florida, com a imagem de David, de Miguel Ângelo, que levou à demissão da diretora, após um pai ter apresentado queixa, por alunos com 11 e 12 anos terem sido expostos à estátua pornográfica, numa aula sobre arte do renascimento?!

Mais incrédula fiquei!

Estamos mesmo no século XXI e isto aconteceu em países que se orgulham de terem exemplares regimes democráticos?

estátua de David, de Miguel Ângelo (1501)

Ou estaremos no mundo de distopias imaginadas por escritores do século XX?  Pior ainda: no caso da nudez da estátua de David parece tratar-se de um regresso à época da contra-reforma católica, um recuo de uns meros quatro séculos, a um tempo em que a censura foi feroz quanto à obra prima da escultura do renascimento e também da pintura de um genial artista. É sabido, pelos livros de História, que o tecto da Capela Sistina, quando, após quatro anos de minucioso e doloroso trabalho, foi dado a conhecer ao beatíssimo Vaticano, de imediato foi sujeito a correções, apressando-se a padralhada a mandar tapar os genitais masculinos, fazendo pintar sobre eles umas folhas de parra. E foi assim, com estes ridículos tapa-pénis, que os nus masculinos do tecto foram vistos durante séculos, até à recuperação da pintura original, já na segunda metade do século XX.

Michelangelo Buonarroti, conhecido por Miguel Ângelo, foi, na minha modesta opinião de professora de História da Cultura e das Artes (HCA), durante uma década, não só o maior artista de todos os tempos na representação do nu masculino, mas também um arquiteto incomparável, um poeta notável, em suma, um Humanista, sem o qual não podia contar-se a história do ocidente.  A minha única viagem a Roma teve a Capela Sistina como um dos propósitos, e felizmente pude ver os tectos como teriam sido pintados por Michelangelo Buonarroti.

Entre a imensa parafernália de recordações para turistas que se vendem por toda Roma, descobri um calendário com representações dos genitais masculinos, em frescos de Pompeia e em diversas pequenas esculturas anónimas. E encontrei também um precioso livro com desenhos de nus de Miguel Ângelo. Com pénis em repouso, murchos, minúsculos, e outros eretos, esses sim, dignos de serem considerados signos da falocracia. A estátua de David, pela sua excelência e dimensões, devia ter um assim.

Nos anos em que fui professora de HCA, usei muitas imagens de nus, femininos e masculinos. Aliás não consigo sequer imaginar como ser professora de História de Artes, que inclui necessariamente a História da arte grega e as sucessivas “cópias”, dos romanos ao renascimento e aos posteriores movimentos neo, sem usar as imagens de nus.

estudo do pintor (1563) Giorgio Vasari

O facto de serem figuras mitológicas faz toda a diferença, como o testemunham diversas polémicas com pinturas e esculturas bem conhecidas. Como se aos deuses e deusas toda a nudez fosse permitida, mas não aos comuns mortais. Os anjos, como toda a gente sabe, não têm sexo.

Deveras curioso, porque é inimaginável a representação da nudez, sem que os artistas a observem e escrutinem em todos os detalhes, inclusive os genitais, parte integrante da anatomia humana. E Miguel Ângelo seguramente observou a nudez e muito a apreciou, sobretudo os corpos de homens, como deixa perceber a genial escultura de David e também as pinturas dos corpos musculados das mulheres no tecto da Capela Sistina

E como ensinar a história dos frescos dos prostíbulos de Pompeia, felizmente recuperados, muitos séculos depois do Vesúvio os ter enterrado em cinzas, sem mostrar as imagens dos genitais, muitas vezes em ação?!

Na História da Arte nenhuma nudez pode ser castigada. Uma não existe sem a outra. Melhor ainda: não existiria sequer humanidade, e portanto qualquer história para contar, sem os genitais em ação.

O episódio ocorrido na escola da Florida, que levou à demissão da diretora, traz-me à memória outro caso, de há doze anos, da professora Bruna Real, de Mirandela, afastada da escola pela câmara municipal, por ter posado nua para a edição portuguesa da revista Playboy. À data deste híper mediático caso de censura, eu era já uma feminista diplomada e, contra o politicamente correto, publiquei na edição seguinte desta revista masculina, um artigo em defesa de Bruna Real: “Os lugares da nudez”.

Estava longe de imaginar que uma dúzia de anos depois precisaria de escrever em defesa da nudez masculina.

O queixoso pai americano, com tamanho zelo na educação do seu filho púbere, acaso o proibirá de usar o telemóvel, ter acesso às redes sociais de trampa, onde seguramente vê toda a espécie de pornografia?!

Uma metralhadora, com tamanho q. b. para tapar um pénis ereto de David, talvez não fosse suficientemente chocante para provocar mais um debate sobre a lei das armas nos EUA.

Mas a imagem de um natural e inofensivo pénis, visto por uma turma de púberes, conseguiu levar à demissão duma professora na pátria da democracia!

Corrigir livros e esconder os genitais, em obras que pretendem mostrar a nudez em todo o seu esplendor, não é apenas censura. É falsificar a História.

Não há pachorra para tanta merda politicamente correta!

a criação de Adão, Miguel Ângelo (1512)

1 COMENTÁRIO

  1. Sem papas na língua. Como é necessário! Apetece dizer palavrões, para ver se esta gente pejada de miopia acorda de uma vez por todas! Os antigos dizem «est modus in rebus», que é como quem diz, à minha maneira, «cada macaco no seu galho». Ou doutra forma: o contexto é soberano para se compreenderem os factos e as cenas. Que não te falte genica, Alice, para assim verberares estupidezes!

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