Era natural de Madrid, mas tinha ascendentes na Galiza. Chegava a minha casa eufórica meses depois da Revolução dos Cravos.
Pedia-lhe calma. A Revolução era nossa, ainda estávamos excitados e ansiosos, não fossem as coisas mudar. E os cravos eram um detalhe que envolvia os acontecimentos com o véu diáfano da Poesia.
Fantasia não, era tudo verdade, mas podia ter corrido mal…Afinal os militares enfrentavam, com muita valentia e alguma imaturidade, um regime de 41 anos…
“As flores, as flores…como chegaram ao cano das espingardas?” E insistia, com os olhos
redondos e brilhantes como dois berlindes. “Já viste que mitigaram a tensão, semeando o
empolgamento pelos media do mundo inteiro?”.
Claro que sabia, sabíamos todos, orgulhosos daqueles capitães idealistas que a música de intervenção contagiara. Nunca tão amados foram os cantautores como inspiração, para abrir caminhos na galáxia da utopia.
Voltava a pedir-lhe calma, ciumenta-enternecida com aquele fascínio todo pela nossa Revolução, mas a Marta também era amante de Sociologia, queria fazer um trabalho com detalhes e a informação contraditória não deixava.
Havia muita poeira. A sociedade ainda estava dividida. Todos os dias havia informação de que nada estava seguro, mas ela só tinha na cabeça as imagens comoventes de um povo a vibrar, até nas aldeias mais remotas.
Por tudo quanto era lugar havia festas inauguradas com pompa, colchas a enfeitarem as varandas como nas festas das padroeiras locais. Uns davam vivas aos militares, na palavra Revolução. As vozes mais discretas de mães de filhos estropiados, algumas “órfãs” amargas de outros que nem puderam ver uma última vez, maldiziam baixinho os que tinham incentivado a guerra colonial e seus horrores. Dali em diante, diziam, não morreriam mais filhos de ninguém em conflitos inúteis.
Nessa altura ainda não sabíamos dos oportunistas, dos vira-casacas, dos novo-democratas por conveniência, que logo erguiam “monumentos” ao estudo da Revolução como aspirantes à fama. E os verdadeiros, aqueles que tinham amargado com a pobreza, perseguição e indiferença, continuavam a padecer da última, sem outros pergaminhos que não fossem a dignidade e o respeito por um Movimento que os libertara do medo.
Isto cá dentro, porque lá fora nunca os conflitos deixaram de arrasar, dividir, ou de matar por vícios de mesquinhez semelhante.
Ainda se inventavam histórias mal e bem intencionadas. A exaltação dos portugueses passava fronteiras e chegava a outras Martas, como sendo uma Revolução com nome prévio incomum. Já escolhido? Que criatividade!
“Não…nada disso”. Estávamos já diante de um café suave na minha própria cozinha, com a tarde a declinar. Ela ia ficar lá em casa e só a minha mão direita trabalhava a intervalos, para lhe refrear o galope de perguntas. Também lhe contava muita inverdade, nessa altura. Estava longe de Lisboa, como se estivesse num país estrangeiro. E o que mais me atormentava, eram os boatos das mais diversas origens.
“Mas os cravos, Helena”.
Ah, sim. Digo-te em duas linhas como foi.
Uma senhora, com família na Galiza como tu, acabou por tornar-se a heroína maior trocando um cigarro por um cravo. Não…agora escutas até ao fim e depois vais ouvir outras pessoas, se quiseres.
Chama-se Celeste Caeiro, nasceu no ano em que começou o Estado Novo. Depois explico melhor. Mora por ali perto. Ali quero dizer, o local dos acontecimentos decisivos. Arranjou emprego de bengaleira num self-service moderno, que festejava o primeiro aniversário naquele dia.
Bem sucedido, sim. O gerente até mandara comprar, na véspera, flores não muitos caras e vistosas, por acaso no mercado da Ribeira, para oferecer uma a cada cliente que aparecesse…Agora é impossível viajar e levar-te a conhecer o mercado, Marta, a zona das flores. E não te posso dizer, porque não sei ao certo, se passaram a vender mais cravos a partir daquela altura, mas ia jurar que sim.
Com as notícias alarmantes que corriam pela cidade, os estabelecimentos não abriram. O gerente estava à porta para informar os empregados de que não havia trabalho. Mas as flores num balde com água na cave, ou eram aproveitadas por alguém, ou acabariam mortas. A Celeste e a colega, acabadas de chegar, que as levassem para casa. Cada uma trouxe um braçado de cravos rubros e brancos e foi direita ao destino: uma com medo de ser atacada, outra, já imaginas qual delas, empolgada com as notícias.
Mal subia a rua onde mora, a Celeste viu a vagarosa procissão de tanques por ali acima e abeirou-se de um soldado, a perguntar que aparato era aquele. Que iam para o largo do Carmo, dizia ele, prender o Primeiro Ministro. Se não tinha um cigarrinho que lhe desse, porque os dele tinham acabado.
Estava cansado, com fome. Conta ela que se se houvesse um restaurante aberto, ia comprar-lhe alguma coisa de comida, mas à mingua de cigarros, oferecia-lhe uma flor… um cravo rubro. E ele aceitou, espetando a haste no cano da arma pousada ao alto, a seu lado.
Ela gostou tanto do gesto e do efeito, que seguiu pela rua acima abordando os soldados dos outros tanques, distribuindo cravos, apontando o efeito que o primeiro fazia no cano de uma espingarda. E todos imitaram o colega, num desfile inédito de vasos de guerra direitos ao centro do poder, para deporem o representante visível de um regime.
Marta estava calada, eu também, ambas emocionadas com uma história hoje farta de ser contada, mas naquela altura, não a ela. Só uns segundos depois a minha Amiga falava da
energia que os cravos vermelhos, e o entusiasmo da multidão, teriam emprestado aos soldados cansados e com fome.
E comentada a aventura dos capitães, aquela fractura de tempo entre a vontade de agir e o medo de morrer, ou o momento em que um herói se revela, apaziguava a ansiedade, apontando o planeamento para o dia seguinte. Era previsível. Queria viajar para Lisboa, conhecer o mercado da Ribeira, o Chiado, o Largo do Carmo.
Depois disso e de eu mudar para Lisboa, voltava muitas vezes, como há um mês. Subíamos de novo as mesmas ruas, apontávamos janelas. E repetíamos, quase cinco décadas depois, esse circuito de recordações emotivas.
A sociedade pode estar dividida, os ânimos exaltados, os saudosistas do passado a fazerem os impossíveis para repor as diferenças profundas entre ricos e pobres, mas a sociedade portuguesa é hoje uma realidade diferente, consciente dos direitos. Venceu a barreira de misérias várias, algumas de revelação tardia…
Um ponto de não retorno, a precisar do reforço de outros pontos.
Bonita história, Helena. É sempre bom recordar como tudo aconteceu. Bem hajas!
Um relato muito bem urdido, em que a história (da revolução de 25 de Abril) se vê temperada de emoção e até poesia e romantismo!
Lúcida a síntese final. Há um ponto que se quer e espera de não retorno. Mas, por vezes, devido aos interesses instalados e aos abusos, a Democracia parece abanar…
“Um ponto de não retorno”. Que assim seja, Helena. É preciso fazer como as crianças, apertar as mãos com força e cerrar os olhos para gritar “De não retorno!”.
Bela história, Helena, esta da euforia de Marta. E que saudades dos tempos em que éramos todos tão convictos como ela.
Obrigada!
É sempre muito agradável ler as suas histórias, sobretudo por quem, como eu, viveu esse período tão intensamente a nível social, académico e pessoal. Um acontecimento que tentava criar uma sociedade , mais justa e solidária, apesar de como bem diz “ A sociedade pode estar dividida, os ânimos exaltados, (…)!mas a sociedade portuguesa é hoje uma realidade diferente” da mesma forma que nós já não somos quem éramos, com a idade e ideias com que vivemos essa acontecimento…ainda bem e valham-nos histórias como a da MARTA para que o Cravo continue a ser recordado símbolo vermelho e vivo de um sonho que se quer sempre presente.