Falei com ela à porta da Loja do Cidadão. Vinha mais tarde mas jantava comigo. Aproveitei para fazer compras enquanto as 123 pessoas à minha frente esperavam eternamente. Larguei a Loja do Cidadão com uma má noticia, daquelas em que não conseguimos vislumbrar solução…
Com desalento apanhei o autocarro, entrei naquele amontoado de gente, apeie-me à porta da mercearia. Um chouriço, pão alentejano. De resto, as ervilhas, os ovos, o bacon e as cenouras amontoavam-se no saco, tentando escapar ao destino de um jantar simples, gourmet para mim.
Cheguei a casa, pendurei o casaco molhado e a má noticia no hall de entrada, deixei o Chico Buarque abraçar-me. Por agora, nada podia fazer a não ser… ervilhas.
Conhecemo-nos para aí há uns 20 anos, conhecemo-nos desde sempre. Regra geral, sou eu quem está mais frágil. Ela, organizada e arrumada das ideias, escuta-me, ajuda-me a perspectivar os problemas, dá-me alento, a força que preciso. É sempre a falar a direito, sem bengalas. Juntas descomplicamos.
Continuei com o Chico Buarque, nunca me deixa ficar triste. Piquei cebolas e alhos. Refoguei-os em azeite, sem deixar fritar. Acrescentei o bacon às tiras, o chouriço às rodelas, temperei com o que tinha à mão de semear. Pouco tempo depois acrescentei cenouras e doces ervilhas. Acrescentei água e salvei lá para dentro um resto de coentros com morte anunciada no frigorífico.
Houve uma ocasião em que a nossa amizade quase que azedou por coisas de trabalho. Resguardei-me, afastei-me para proteger a relação. Não se descartam amigos de sempre por dá cá aquela palha. Precisamos das pessoas que testemunham a nossa vida.
No dia dos meus anos ofereceu-me uma pulseira azul e a amizade de volta. Pusemos a vida em dia na Senhora do Monte, o miradouro mais bonito de Lisboa, a minha igreja a céu aberto.
Fui mexendo tudo muito devagar, recordando a vez em que fomos ao espaço da luz com paredes forradas de imagens e janelas a mostrar o céu embrulhado no Tejo. Nessa noite as paredes virtuais ilustravam o universo, o cosmos inteiro. Mas, apesar de estarmos rodeadas de estrelas e galáxias, ninguém dançava.
“Não danças porque ninguém dança?” Sorriu e foi para o meio da pista dançar consigo própria. Ela no centro do universo. Literalmente. Não demorou muito até que o universo se movesse e a pista enchesse. Num ápice! Bastaram uns passos de dança para virar o universo de pernas para o ar. Fez-me pensar, fui dançar.
O Chico Buarque cedeu a vez à Maria Rita, filha da Elis Regina, a cantar o Pagu: “Nem toda a feiticeira é corcunda, nem toda a brasileira é bunda. Meu peito não é de silicone, sou mais macho que muito homem”. É das melhores definições que conheço do que é ser mulher. Tenho uma galáxia de amigas assim, fortes, giraças, feiticeiras sem corcunda.
Mesa posta, dei um jeito à casa, recheei-a de velas. Acrescentei mais água às ervilhas e um pouco de vinho branco. Finalmente, com o trompete enfeitiçante do Miles Davis, pus ovos a escalfar. Desliguei, deixei apurar.
Chegou, linda como sempre. Desenrolou o cachecol vermelho que parecia não ter fim. Pendurei-o ao lado do problema sem solução, fechei a porta do hall.
- Então que se passa? - Nada querida, nada que não consiga virar de pernas para o ar. Temos é de dançar. - Mas hoje está tudo fechado... - Dançamos aqui mesmo, bem no centro do universo, rodeadas de ervilhas escalfadas com estrelas e galáxias...