Em 1965, o sucesso na escola primária e um empurrãozinho da professora, garantira-me uma bolsa para prosseguir estudos num colégio na vila próxima da minha aldeia. Aí ganhei prestígio como boa aluna, o meu nome esteve continuamente no quadro de honra, recebi prémios.
O que contrasta com o que conto a seguir.
Punida por diversas infrações, como fumar uns cigarros às escondidas, ler fotonovelas, observar descaradamente os rapazes nas práticas desportivas, acabei expulsa do colégio, por ter ousado escrever uma crónica no jornal local, criticando o diretor e reivindicando direitos para as raparigas: praticar desportos a sério, em vez daquelas infantilizadoras brincadeiras das meninas, misturarmo-nos com os rapazes nas salas de aulas, em vez daquela absurda divisão entre filas de rapazes e filas de raparigas, partilhar as mesas nas salas de refeições…
Paguei cara esta ousadia.
Num sábado de manhã, a minha mãe recebeu, alarmada, a visita do diretor. Trazia a caderneta com as notas do 2°período e comunicava oficialmente a minha expulsão do colégio.
A criar duas filhas sozinha, na ausência do meu pai, emigrado nos EUA, a mãe sentenciou: acabava ali a minha carreira de estudante e a presunção de jornalista. Senti a ameaça como o fim da linha. Escrevi uma carta de despedida, sem acusações e sem pedido de perdão, tomei veneno dos ratos e deitei-me na cama à espera da morte. Fui salva pela minha irmã que, entrando por mero acaso no quarto, alertou todos os parentes. Chamou-se um táxi. Cheguei ao hospital da vila já próxima da morte. Uma imediata lavagem ao estômago devolveu-me à vida.
Regressada a casa, passadas as férias da Páscoa, a minha mãe recuou na sentença e procurou uma escola para eu terminar o ano (6°ano, equivalente ao atual 10°).
A minha condição de boa aluna garantiu-me um terceiro período num internato na Figueira da Foz, onde também ganhei prestígio e cheguei a ser uma espécie de “assistente” do professor de Latim.
No ano seguinte recuperei a liberdade, frequentando um externato junto à Praça da República, em Coimbra, partilhando com a minha irmã, entretanto já na universidade, um quartinho, ali nas proximidades.
Tanta liberdade, depois de anos dela privada pelo rigor da educação sexista, acabou numa gravidez aos 17 anos, um casamento à pressa e muita dificuldade em viver uma vida de adulta, casada, com um filho, estudante e com empregos ocasionais de curta duração. Caramba: eu era pouco mais que uma criança!
Desistente do curso de Direito, mudei para História. Estava aí, naquela madrugada de 25 de Abril de 1974.
A vida precipitou se a acontecer.
E foram precisos 35 anos para, num almoço de antigos alunos do colégio, me aproximar do antigo diretor, e finalmente esclarecemos as nossas razões. A rebeldia, a expulsão, a tentativa de suicídio, tudo foi compreendido e perdoado.
No auditório da Calazans Duarte, em vésperas de um 25 de Abril já no século XXI, estes factos foram ouvidos com incredulidade por aqueles adolescentes filhos da liberdade. E recontados por um aluno, aspirante a jornalista, que hoje faz carreira, algures numa cidade inglesa.
Há ousadias que se pagam caras. Eu paguei. Mas esta é, afinal, uma triste história com um final feliz!