Li recentemente um livro de David Graeber, com o eloquente título “Trabalhos de Merda”.
Documentado com centenas de depoimentos, escrito com total clareza e sem presunção intelectual, “Trabalhos de Merda” é um ensaio antropológico sobre o trabalho inútil e muito bem remunerado, de que as sociedades pós modernas são cada vez mais pródigas.
Assessorias, consultorias, vice-diretorias, vice-presidências e muitos outros trabalhos que ninguém sabe o que são, grande parte das vezes nem aqueles que exercem tais profissões, contam-se, segundo o antropólogo supra citado, entre os trabalhos inúteis, bem remunerados, como a excelência dos trabalhos de merda. As organizações que recrutam tais profissionais passariam bem sem eles e os próprios têm a plena consciência de que o seu trabalho é absolutamente dispensável. Alguns não aguentam e abandonam-no. Tal é a honestidade intelectual dos testemunhos que ilustram o ensaio do antropólogo americano.
Bem diferentes dos trabalhos de merda são os trabalhos merdosos, que, vagamente referidos mas não sendo objecto de análise no dito ensaio, me dão a oportunidade de aqui os abordar.
Trabalhos merdosos são trabalhos com utilidade, mas mal pagos. Do ponto de vista da recompensa monetária, um trabalho de merda é sempre indiscutívelmente preferível a um trabalho merdoso. Mas há trabalhos merdosos de discutível utilidade. Simplesmente existem para alimentar uma clientela que não quer levantar o cu do sofá quando há futebol na TV, ou cozinhar ao fim de semana (e não só) e sobretudo servem para enriquecer uns quantos exploradores do trabalho de jovens.
Estou a pensar em trabalhadores concretos, entregadores de encomendas, particularmente os estafetas entregadores de pizzas, hambúrgueres e outros “bens”alimentares, mesmo que sejam dos que fazem mal.
Embora morando numa cidadezinha de 35 mil habitantes, vejo-os por aí a toda a hora, a acelerar nas suas motoretas, despendendo um tempo mínimo na entrega, e siga para próxima, porque quanto mais entregarem mais ganham. Chama-se a isso trabalho por objetivos. De acordo com fontes consultadas, podem ganhar entre 1,50 a 6 € por entrega, dependendo da distância e da avaliação de eficiência feita pela clientela. Sem organizações que defendam os seus direitos, estes empresários em nome individual, inscrevem-se na App respetiva, abrem início de atividade nas Finanças, fazem os descontos para a Segurança Social, têm de assumir as despesas do meio de transporte e até da saúde, do seu veículo e deles próprios, pasme-se! se por azar, tiverem um acidente. Os patrões, invisíveis, que ganham dinheiro através das App, chamam a isso auto-responsabilização.
Estafetas de entrega de comida são o must do autoemprego, do empresariado jovem da era das App.
Poderíamos chamar a estes trabalhos merdosos, empregos tipo Amazon. Não estou certa, mas suspeito que foi esta gigante comercial de tudo, a pioneira destes trabalhos merdosos. Tive amigos, jovens, na Inglaterra, que se desunhavam a fazer entregas, com os seus próprios carros, a viverem aos magotes numa casa, para conseguirem, juntos, pagar uma renda. Orgulhavam-se de trabalharem para a Amazon, cujo dono, Jeff Bezos, é só a pessoa mais rica do mundo, sem terem a mínima noção de como contribuíam para fazer crescer exponencialmente a sua fortuna. Não podem entender que a única forma de enriquecer é explorando a mais valia, o trabalho dos outros, se não sabem sequer quem foi Karl Marx, ou se, conhecendo o nome, talvez o considerem um perigoso comunista.
Alguns ainda lá andam nas entregas, sem tempo e sem cabeça para pensar como hão de sair.
Outros, mal juntaram umas libras para comprarem um chasso velho em Portugal, meteram as tralhas na mochila e “embora, que se faz tarde”!
Pergunto-me amiúde que projeto de vida poderão ter estes jovens?!
Sem tempo para estudar, para aprender um trabalho útil, sem tempo sequer para pensar nisso, alguns, julgando-se uns felizardos por serem empresários em nome individual, mesmo sendo o seu trabalho muito merdoso, estes jovens hipotecam o seu futuro. Vão ficando nos trabalhos merdosos por falta de alternativa. Têm 20 anos, terão 22, 25, talvez 30, e continuarăo nas entregas.
De trabalho merdoso em trabalho merdoso, nunca chegarão a ter um trabalho de merda.
Bem visto, bem analisado, a diagnosticar causticamente uma atividade que todos vêem, de que todos se servem, sem, alguma vez, se terem interrogado acerca dela. Fez bem Alice Marques em pôr, sem peias, o dedo no mais profundo da ferida.
Leio tudo o que escreve. E delicio-me com as suas crónicas.
Confesso que me identifico com as suas ideias e ideais e confesso que de tudo o que li esta é a crónica que mais me sensibiliza. Que me leva a refletir. Que me toca.
Obrigada Alice.