A INSUPERÁVEL FORÇA DO QUERER

Quis o acaso que nos tivéssemos cruzado em iguais, mas diferentes fases das nossas vidas. Quarenta anos nos separam e programas de reabilitação pós AVC (no meu caso) e traumatismo crânio encefálico (no caso da Carolina) nos juntaram. "Tínhamos de nos encontrar" escreveu ela há dias, como quem profetiza um acontecimento. Chegaremos onde nos levar a reabilitação. Do fundo do coração, desejo-lhe que continue a progredir e chegue muito mais longe do que eu. Porque eu tenho já uma longa vida e muitas viagens para recordar, mas a Carolina tem uma vida para viver e todas as viagens para fazer.

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A Carolina é uma jovem de notável inteligência. Cometi a inconfidência de lhe contar que ia escrever uma crónica sobre ela, talvez com o título “menina mulher coragem”. Comentou, com refinada ironia: “que originalidade”!

É o que todos dizem dela. Eu tinha obrigação de escrever algo mais original.  Passei horas a pensar num título. Humor, alegria, inteligência, saber, sentido crítico, simpatia… não chegam para definir a Carolina. Ela é um ser humano excecional.

Um estúpido acidente, em 2014, pode ter-lhe roubado o corpo de bailarina, mas fez dela um ser humano de insuperável beleza e força do querer.

Conheci a Carolina no início de 2023.

Reparei naquela miúda, nova no ginásio da clínica onde há mais de três anos faço fisioterapia. Falava sem parar, com uma espécie de urgência de dizer. Nomes de canções, filmes, cantores, atores, países, capitais, monumentos, rios, montanhas… e muitos outros tópicos. Percebi que era não só um jogo, mas também um exercício permanente de comunicação para manter a memória ativa. O fisioterapeuta, o incomparável Bernardo, para quem a Carolina é a Carolina e eu a Alice, duas pessoas com as suas vidas, as suas histórias e não duas doentes a quem ele propõe séries de exercícios, rapidamente me envolveu nestes jogos, como uma espécie de jogadora suplente. Há sempre um filme antigo que eu vi, um livro que li, uma cidade ou um monumento que visitei, vantagem de ter mais 40 anos do que a Carolina. E há centenas de nomes que não sei, e muitas outras referências da sua geração, que aprendo com ela.

A Carolina que eu conheço é uma miúda de 28 anos, que fala e canta sem parar, em Português e Inglês, durante as horas da terapia.

Tem uma história com um episódio infeliz, um verdadeiro contratempo. Queria ser médica. Aluna brilhante no secundário, fez por isso e conseguiu a média almejada para entrar nesse curso. Estudava medicina, na Universidade de Coimbra, no 2°ano, quando, num estúpido acidente a sair do carro, outro carro a atingiu, provocando-lhe uma brutal lesão crânio encefálica. Tinha então 19 anos, corpo de bailarina e sonhava ajudar as pessoas a ter uma vida com saúde, contribuir para um mundo melhor.

O acidente estragou-lhe os planos. Mas longe do prognóstico catastrofista da equipa médica, contra todas as expectativas, a Carolina, com uma insuperável força do querer, tem recuperado ano após ano, mês após mês, capacidades que fazem dela não apenas uma lutadora, mas uma vencedora digna de medalha de ouro.

A história dos anos após o acidente foram contados por ela mesma, num livro, cujo título, FASES DA VIDA, (Chiado editora) é elucidativo da sua atitude, da sua inacreditável capacidade de celebrar cada pequena conquista de autonomia, alimentando a vontade indomável de retomar o projeto de fazer o curso de medicina, interrompido pelo acidente.

Estes oito anos não foram um parêntesis na vida da Carolina. Foram e ainda são anos de obstáculos a vencer, ou melhor, de provas superadas e outras para superar.

No seu livro, cada dia de uma conquista é uma celebração da vida. Pôr-se de pé, dar os primeiros passos, tomar banho sozinha, cozinhar, largar a cadeira de rodas, passear no shopping, ir à piscina, ganham a dimensão de acontecimentos memoráveis! Que de verdade são, para quem teve um prognóstico do resto da vida deitada numa cama.

Mas não só da reabilitação física tratou a Carolina. Determinada a voltar a estudar medicina e ainda sem autonomia para regressar à Universidade de Coimbra, não perdeu tempo a curtir depressões. Voltou a estudar, frequentou no Instituto Politécnico de Leiria, a instituição de ensino superior próxima de casa, disciplinas com afinidades com as do curso de medicina, enquanto aguarda o momento em que possa regressar à Faculdade de Medicina. Página após página, em FASES DA VIDA, Carolina compôs um verdadeiro HINO DA ALEGRIA, que dedica à sua mãe, seu alter ego nestes anos de corajosa luta e incríveis vitórias.

Ler a história desta fase da vida da Carolina suscitou em mim uma admiração inominável por esta jovem, este ser humano fascinante. Brilhante. GIGANTE. Por isso lhe dedico esta crónica.

1 COMENTÁRIO

  1. Histórias destas fazem-nos crer na enorme capacidade que o cérebro humano de recuperar, quando o pensamento vai no sentido positivo certo.
    Ficamos gratos a Carolina pela sua lição de vida; ficamos gratos a Alice por no-la dar a conhecer.

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