Peregrinando atentamente por ruas e vielas das nossas esquecidas aldeias do interior, há, de vez em quando, um pormenor que nos deixa perplexos. E dizemos com os nossos botões: é lá possível!… Não pode ser! Uma casa ainda em pé e datada de antes de Portugal ser Portugal, porque só o começámos a ser, independentes de Castela, pelo Tratado de Zamora de 1143!…
Entrámos por essa viela. Rua Cimo de Vila, povoação de Queimadela, concelho de Armamar.
Cobria o musgo as paredes de pedra solta. Abundantemente, a denunciar que por ali há muito que não passava gente nem bestas. À esquerda, uma parede revestida de escamas. Em frente, uma porta velha, de tábuas mescladas pelas intempéries. Ladeava-a uma escada de cimento, a contrastar pelo ar moderno com a envolvência antiga: daria, certamente, para esconsa entrada ou para uma viela mais. Admirámo-nos da janela escancarada resvés ao telhado, que por ela se via ser de telha vã, de canudo, em várias camadas. E lembrámo-nos, então, de ter lido, na página da povoação:
«Queimadela foi muito conhecida por uma arte já desaparecida: o fabrico da telha mourisca e de canudo. Esta atividade teve origem na idade média, altura em que assumia grande importância para a povoação, num misto de produção industrial e atividade artística, uma vez que também se produziam vários utensílios domésticos e objetos decorativos. Esta prática prolongou-se até ao século XX, mas desapareceu com o surgimento da telha de cerâmica. A última pessoa a dedicar-se a esta arte foi o senhor João André Pereira».
Ficámos cientes.
Chamou-nos, porém, a atenção a verga superior da janela, levemente arqueada. Tinha letras e números gravados. Aproximámo-nos e soltámos um oh! de espanto – que a data apontava para o século XI. Como poderia ser? Teria a casa idade tamanha?
ERA Ɖ I083.
O E, como era de uso, ficara metido no D; I com pintinha era 1. Estranhámos o 8 de braços abertos; mas topámos outro igual e com o mesmo significado na aldeia de São Martinho das Chãs, também no concelho de Armamar.
Por isso, se dúvidas houvera, dúvidas não podia haver, era mesmo um 8. Ou seja, o lintel anunciava que fora feito quase nos finais do século XI. Uma casa do século XI assim perdida em ruela em povoação que dá pelo nome de Queimadela, como se, um dia, um incêndio a tivesse lambido!… Podia lá ser!
E fomos indagar da sua antiguidade.
Tinha-a, na verdade, porque, na página 280 do livro História do Bispado e Cidade de Lamego, de M. Gonçalves da Costa, datado de 1977, Figueira e Queimadela aparecem mencionadas como dependentes ou filiais da Igreja de Britiande. E, noutra página, a 150, se conta que, antes de falecer, D. Afonso III legou herdamentos em Queimadela à catedral de Lamego. Sim, é verdade, D. Afonso III morreu a 16 de Fevereiro de 1279, ou seja, já no último quartel do século XIII. Mas estas referências, acreditamos nós, não apareceram assim sem mais nem menos. Algo houvera antes.
E achou-se, para já, o seguinte: segundo o documento nº 242, publicado por Ruy de Azevedo em Documentos Medievais Portugueses, um tal Soeiro Viegas, chamado também Moço Viegas, confiscou para a coroa avultados bens em Figueira, Queimada e Queimadela, antigas honras de D. Egas Moniz e que também D. Afonso Henriques doara, em 1153, a Pedro Viegas e sua mulher, D. Ouroana Dias.
Temos Queimadela nas bocas do mundo no século XII, pois então!
Por conseguinte, decerto outras novidades por descobrir nessa documentação antiga. O lintel da Rua Cimo de Vila aí está a espicaçar a curiosidade!
Artigo em co-autoria com José Carlos Santos
Artigo actualizado em 11/03/2023 aqui: Ainda “A habitação mais antiga de Portugal” (duaslinhas.pt)
Muito bem!
Um texto cheio de interesse e que, quanto à antiguidade da casa, ou apenas da verga superior da janela, envolve um curioso conjunto de nomes e data que remontam ao primeiro rei de Portugal.
Isto porque, segundo os livros de José Mattoso, já mais recentes e com inclusão de novos dados na investigação, Soeiro Viegas era, com toda a certeza, um dos dez filhos (de dois casamentos) de Egas Moniz. Se do segundo, com a condessa Teresa Afonso de Celanova, senhora que cuidou dos filhos do nosso primeiro rei, teria prestígio e protecção especiais.
No meu Afonso apresento Soeiro, no índice onomástico, como terceiro filho do “Aio”…mas tanto ele como os irmãos exerceram altos cargos na corte…
Sem dúvida também que casou com uma Sancha Bermudes de Trava, filha de Bermudo Peres de Trava e de Urraca Henriques, irmã de Afonso Henriques.
Reparar num texto destes que descobre uma casa tão antiga e recorda estes nomes, foi para mim emocionante. Muito grata.
Nunca se colocaria uma data em algarismos tal como os conhecemos hoje. A estação até tarde foi em numeração romana. Esse registo pode ser antigo e até pode ter uma razão de ser, mas não prova nada.
Além disso, uma verga assim, neste arco abatido, ligeirinho, parece dissonante neste contexto (e existe uma disparidade entre as fotografias, numa existe uma guarnição de madeira, noutra não).
sim, as fotografias foram feitas em alturas diferentes, isso é evidente.
Apesar da data inscrita, o vão de janela, abatido, bem como a grafia são mais consentâneos com o século XVII conforme sucede em outros inúmeros imóveis da região. Pode, no entanto, ser memória de outro imóvel que ali tenha existido e cujo suporte de eventual data inscrita, em caracteres romanos, estivesse já muito deteriorado e que levou à sua beneficiação com inscrição nova, actualizada, para memória futura.
Numeração árabe no séc. XI?
Nota se a essência do espiritual daquela altura, casas construídas com a benção de Deus, casas construídas com o coração em Deus.
Qual deus? Há tantos! Só na Índia há mais de 1000…
Que lintel e epígrafe são seiscentistas, não há dúvida. Mas nesse caso o texto não será antes “Era de 1683”, com um 6 peculiar?… Aliás, posso estar a ver mal, mas parece que distingo um arranque no canto superior esquerdo do suposto zero…
Caetano, eu, no seu seis, vejo um pai Natal muito zangado!
A ler de seguida a explicação: https://duaslinhas.pt/2023/03/ainda-a-habitacao-mais-antiga-de-portugal/
Outra opcao, era aproveitar pedras de construcoes antigas que foram sendo desmanteladas, de castelos, de mosteiros, etc.
Lembrem-se que o coliseu de Roma, lhe faltam pedras nas fachadas que foram retiradas para a construção de casas ou palacios